Redução ao Absurdo Pereira

Ricardo Araújo Pereira é o humorista da “nova geração” que mais admiro. Não só pela sua capacidade de representação (que, no campo da comédia, é assinalável) mas, sobretudo, pela sua capacidade de escrita (que muito deve à sua vasta bagagem cultural)

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Enric Vives Rubio

RAP foi o factor diferenciador nos “Gato Fedorento” (tanto a nível de representação como da escrita) e, na sua carreira a solo, tem-se desmultiplicado entre o humorista político (no “Governo Sombra” e em algumas crónicas da Visão) e o cronista do quotidiano (nas “Mixórdias de Temáticas”, em “É melhor do que falecer” e noutras crónicas da Visão).

Em todas as situações, exibe uma capacidade criativa e humorística invulgar que o posiciona, claramente, como o melhor humorista da sua geração. E, seguramente, como um dos humoristas portugueses com maior profundidade política e filosófica.

A sua escrita, mas também a sua postura cívica e política demonstram bem essa profundidade (esta palestra é notável a esse respeito). As referências que utiliza (a diversas obras culturais) e a crítica mordaz (através do humor) de certas atitudes políticas e cívicas são a sua marca pessoal, que o distingue doutros humoristas que optaram pela neutralidade. Por exemplo, a grande referência da geração anterior, Herman José, optou pelo distanciamento da política explícita e raramente escreveu humor político-filosófico. RAP, pelo contrário, assumiu-se política e filosoficamente, de esquerda e ateu, o que nem sequer o beneficia do ponto de vista do marketing. É que, quer os ateus, quer os de esquerda, são minorias em Portugal.

Como já referi, é admirável a capacidade criativa e produtiva de RAP. E, embora use diversificadas ferramentas humorísticas, penso que RAP é especialmente eficaz na utilização de uma estratégia argumentativa que tem, ao mesmo tempo, elevada eficácia humorística e política: a redução ao absurdo.

Quem acompanha os seus textos encontrará, facilmente, diversos exemplos da utilização dessa ferramenta: RAP parte de uma situação concreta e explora-a até ao absurdo, criando humor e, muitas vezes, destruindo argumentações.

No quotidiano, lembramo-nos da crónica sobre a possibilidade de o Ikea mandar os seus clientes irem cortar árvores que tivessem potencial para se tornarem numas jeitosas mesinhas de cabeceira (levando ao absurdo a estratégia do Ikea de desmontar e simplificar) ou da “Mixórdia” em que os resumos da Europa-américa são levados ao absurdo pelos “apontamentos do Sr. Américo”, que faz resumos de clássicos numa página.

No campo da política, a crónica do porteiro do Ritz, que pede emprego à Tecnoforma, leva ao absurdo o argumento das despesas de representação, demonstrando como não é aceitável, politicamente, tal desculpa. Numa outra, “Em cada esquina um banqueiro”, RAP propõe o absurdo de todos os estabelecimentos serem denominados de bancos, pois que, assim, nunca poderiam falir.

Na televisão, embora não saiba qual dos “gato” escreveu a rábula sobre a despenalização do aborto, apostava que foi RAP. É que, ao reduzir o argumento de Marcelo Rebelo de Sousa ao absurdo, dizendo que as mulheres passariam a ir abortar só porque os cinemas estavam esgotados e desmontando a distinção prática entre liberalização e despenalização, o "sketch" dos “gato” destruiu o argumentário de Marcelo.

Enfim, RAP tem uma apurada capacidade de observação da realidade e um agudo espírito crítico, o que lhe possibilita um sentido de humor refinado. E faz o que só os grandes criadores conseguem: chega a diferentes públicos que o “lêem” em diferentes camadas.

Acredito que RAP apreciará muito um certo mestre (da táctica). Por isso, penso que não se incomodará se eu o cunhar de mestre, só que da redução ao absurdo.

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