Deseja-se mulher. E actriz

Pertence à categoria “grande senhora do teatro português”. É bem provável que deteste a pompa do título. Sabe que pertence ali. A grande senhora do teatro português é Rosa, a protagonista luminosa de Os Gatos Não Têm Vertigens, o mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos

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Maria do Céu Guerra nasceu em 1943. Não gosta nada de estar a envelhecer. Pertence à categoria “grande senhora do teatro português”. É bem provável que deteste a pompa do título. Sabe que pertence ali. A grande senhora do teatro português é Rosa, a protagonista luminosa de Os Gatos Não Têm Vertigens, o mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos.

Esse é o pretexto para estarmos ali, naquela segunda-feira à tarde, com a luz a trespassar as cortinas vermelhas d’A Barraca. Há um encanto no teatro inundado pelo dia, muito diferente daquele que tem quando as luzes se acendem e se abre o espaço para as vidas inventadas. Como néones apagados, que tornam a vida menos fosforescente e mais nítida. Esse é o nosso território.

Onde fomos nós, sentadas numa mesa do canto, resguardadas do calor? À essência do teatro, ao núcleo que a palavra representa, à metodologia, à vida como ela era no fascismo, à pessoa que ela era quando foi preciso defender um projecto, uma companhia. Ao começo e ao fim do mundo.

Era para ter sido escritora. Visto retrospectivamente o seu percurso, parece óbvio que ia ser actriz. Há momentos em que o olhar surpreende por ser alegre.

Como é que se ataca uma personagem? Momento zero.

Como é que eu ataco uma personagem? Cada actor ataca uma personagem de uma maneira diferente. Em primeiro lugar, tenho uma certa avidez.

Palavra que vai sendo rara: avidez.

[pequeno riso] E leio a história umas poucas de vezes, como quem devora. E tenho a certeza de que não estou a perceber tudo. Mas aflita para ter uma primeira impressão.

Essa impressão é um primeiro recorte da personagem?

É uma primeira visualização. Dá o contexto em que se move. É uma coisa que vou aperfeiçoando com mais leituras e sobretudo com a conversa com o director, seja de cinema seja de teatro. Procuro perceber em que é que eu, Maria do Céu, sou verdadeiramente diferente daquela personagem.

Porque é que é importante esse contraste?

Porque me convenci há muitos anos, e ainda estou convencida disso, que se não trabalhar a diferenciação, rapidamente estou a repetir-me. Nesta idade, ainda mais. As personagens não são muitas e por vezes repetem-se.

Depois continuo a trabalhar, a criar. E depois deixo-me imbuir pelo que me trouxe ao teatro, ao cinema, à arte de representação: durante algum tempo, tentar viver em cena como aquela pessoa. Sem sentir que estou a representar.

Viver e não representar...

Exactamente. Isso parte de uma concentração prévia sobre aquela figura. Sei que representar é sempre uma construção. Tenho cuidado...

Empenha-se para que não pareça uma construção artificiosa, é?

É, para que não seja muito visível que é uma construção. E é por aí que eu vou.

Falou de não compreender totalmente. Noção importante, a incompreensão?

Temos de ter a noção de que há muitas zonas de sombra no nosso trabalho e em quem somos. Nunca chegamos a saber exactamente o que é que um director quer de nós. Nunca chegamos a saber realmente se conseguimos chegar lá. Se ultrapassamos a expectativa que nós próprios tínhamos. Se as escolhas que fizemos são as acertadas. Vivemos com essa incerteza — essa incerteza pode ser interessante.

Isso faz medo? A sociedade está investida na procura de certezas.

Pois. Cada vez tenho menos [certezas] e gosto mais de não as ter. Por exemplo, a Rosa, personagem do filme do António-Pedro Vasconcelos, é uma mulher segura. Tem princípios firmes que em nada abalaram a sua ternura, a disponibilidade para os outros. Percebi, neste questionamento, que sou muito mais incerta do que ela. E a segurança não é para mim um valor como é para ela. Para mim, é melhor ser sempre aluna, estar sempre a aprender. Voltar ao ponto zero. Ouvir os outros como se fosse a primeira vez.

Como é que consegue esse espanto? Parece simples a capacidade de nos entregarmos e deslumbrarmos com tudo. Mas é dificílima.

Não é com tudo. [riso] Mas é guardar isso como um grande valor. E não estar distraída. E sempre que uma pessoa disser uma coisa que me abana, dar atenção a isso. A Rosa é tranquila. Eu sou insegura. E sou tímida.

Diz isso sem estar a fazer género?

Digo sem estar a fazer género. Não tenho a certeza de que aquilo que sei chegue. De que o que gosto seja o melhor. E levanto muitas questões. Isto é insegurança. Mas é uma insegurança com que me habituei a viver e que transformei num valor. Porquê? À medida que a vida avança, fui percebendo que não é possível dar nada por certo. O incerto é mais certo [riso], não é? É o que sinto. Embora, às vezes, me atrapalhe um bocadinho.

De que é que tem medo? De falhar? Desapontar?

Não é bem desapontar. No princípio, quando era miúda, tinha medo da opinião dos outros. Tinha sobretudo medo de ser mal entendida. De ser entendida como uma pessoa superficial. As meninas que iam para o teatro eram tontinhas...

E galdérias. Havia esse rótulo. Numa sociedade puritana como aquela em que cresceu isso importava.

Importava muito. Eu sentia que não tinha um desafio intelectual com pessoas do meio [teatral]. E, na minha universidade, as pessoas de sempre iam aprendendo mais, ganhando saberes, apetências, caminhos que se separavam do meu. Tinha medo que a minha evolução ficasse por ali. Quando cheguei ao teatro dizia-se: “Estás a querer trabalhar para o público ou para a crítica?” Era muito frequente, nos meios teatrais, especialmente as mulheres, dizerem: “A Ângela Pinto foi a maior actriz portuguesa e mal sabia ler.” Eu não queria ser a Ângela Pinto.

Quem é que queria ser? Estou a perguntar pelas referências, antes mesmo de perceber que queria ser a Maria do Céu Guerra.

Houve pessoas que me marcaram bastante na juventude. A Carmen Dolores. Era uma actriz que tinha biblioteca. Das poucas que tinham biblioteca. E que emprestavam livros. Depois conheci outras pessoas assim. A Glicínia Quartin. O Augusto Figueiredo, que gostava de ler Dostoiévski. Eu tinha medo que não fosse possível ser assim. Eu tinha medo que fosse obrigatório ser tão instintivo como inculto.

Como se o talento devesse ser um génio por domar?

Sim. Depois percebi que não, que não devia ser instintiva e inculta. Como é que começámos?

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Já não sei como começámos esta sequência. Mas vimos dar a uma parte importante, ao que se quer ser. Há no filme um momento em que a Rosa dá ao rapaz um livro onde se pode ler: “Se eu serei o herói da minha própria vida ou se esse lugar será ocupado por outra pessoa, estas páginas vão mostrar.”

É o livro do David Copperfield.

É uma grande equação na vida de cada um. Quem é que vamos ser? O que é que vamos fazer com a nossa vida? Quando é que esta questão se lhe pôs?

Tive a possibilidade de ter escolha, desde o princípio.

Onde situa esse princípio?

O princípio é quando saio do conforto da minha casa e entro para a universidade e entro para a Casa da Comédia e entro para o Teatro Experimental de Cascais. Esses primeiros anos, em que começo a dizer poesia, a dar-me com pessoas como a Natália Correia, o dr. Fernando Amado, o Almada [Negreiros]. Pessoas mais velhas que nos ajudavam a crescer, a nós, uma série de miúdos ansiosos por perceber alguma coisa do que era a vida e do que era a arte.

Vim de Cascais, foi lá que me criei. Foi lá que comecei a ler, a gostar de escrever.

Quem é que lhe deu livros para ler?

A minha mãe. Era jornalista. Chamava-se Maria Carlota Álvares da Guerra.

A sua avó também era Carlota.

Era. Era uma sucessão de Carlotas.

Nome fino. Diz qualquer coisa da família.

A minha avó era neta de uns conservadores que achavam que a Carlota Joaquina era o máximo [riso]. Uma tia da minha mãe era Ernestina. Da parte do meu avô, tenho uma tia Maria das Dores.

Nomes de santas. O seu também tem uma carga religiosa.

Eram católicos, sim. Era um construir em casa o céu.

Bom, a minha mãe deu-nos livros para ler. Era uma pessoa divertida, fazia teatro. Tínhamos uma sala grande. Nunca chegámos a representar nada, mas líamos peças, fazíamos cenas. D’ O Pequeno Eyolf do Ibsen a peças do Ramada Curto, muitas coisas foram feitas, entre amigos. Tudo misturado, os velhos e os novos. Nós, pequenitos, o meu irmão e eu, participávamos sempre. Era outro tempo. O mundo mudou tanto nos últimos 50 anos... mudou 15 séculos!

E poesia, diziam?

Dizíamos. A minha mãe dizia muito bem, o meu irmão também. Depois começou a trabalhar. Foi locutora da Rádio Renascença, do Rádio Clube Português. Nós começámos a ir a Lisboa ter com ela. E depois a ir para a universidade. Saíamos todos juntos e encontrávamo-nos na Brasileira.

A Brasileira era um ponto nevrálgico. Os artistas reuniam-se naquelas mesas, de manhã e à tarde.

Aquele mundo passou a ser um mundo natural em nós. Tanto que quando fui para a Casa da Comédia já conhecia o Almada da Brasileira. Eu era dali.

Era do meio dos artistas, mas não de uns artistas quaisquer. Dos intelectuais.

Não sei se se chamam intelectuais. Com alguma escolha, com algum critério, com algum bom gosto, sim. Os meus maiores amigos desse tempo eram o Diogo Ary dos Santos, o irmão do Zé Carlos, a Zita Duarte. Gente que veio a distribuir-se pelas pequenas companhias que havia.

A minha estreia foi na faculdade, com uma peça do [Correia] Garção, Assembleia ou Partida.

Achei que a estreia tinha sido com o texto de Almada, Deseja-se Mulher.

Não me lembro bem se foi com o Almada se foi na faculdade. Trabalhei as duas coisas ao mesmo tempo. Não sei qual é que se apresentou primeiro ao público. Isto foi tudo entre 1963 e 64. Quem me puxou, quase que empurrou para ir para a Casa da Comédia, foi a Laura Soveral. Era aproximadamente dez anos mais velha do que eu. Tinha o prestígio de ser uma mulher lindíssima, muito inteligente, que adorava teatro e cinema. Eu estava na faculdade e gostava de estar no grupo de teatro. Diziam-me: “Vai para a Casa da Comédia, desenvolve isso.” Fui a medo.

Qual era a aura que a precedia? Era a de ser muito inteligente, muito espirituosa, muito bonita? Assim como falou agora da Laura Soveral...

A mim? Não sei. Era talvez o que o Almada dizia, o que acabou por ser flagrante em mim: a simpatia. No sentido mais lato. Eu era uma pessoa com quem era agradável falar, rir, estar. E o público tinha por mim esses mesmos sentimentos. Sem destrinçar se isso era qualidade artística ou um dote pessoal.

O Almada escreveu na peça Deseja-se Mulher: “À simpatiquíssima mulher de vermelho.”

Como é que era o seu sorriso nesse tempo? Quando vê fotografias desse tempo, vê o quê? Parece que está a falar de outra pessoa.

Já passou tanto tempo. Nós somos nós e o que os outros dizem que nós somos. Depois passou um longo tempo em que já não era tão simpática. Em que estava muito preocupada com o que estava a fazer. Era mais combativa. Foi a partir do momento em que criei esta companhia. Deixei de ter essa leveza.

Mais uma palavra preciosa: leveza.

Concordo muito com o Italo Calvino quando ele diz que a leveza é uma das indispensáveis palavras para o milénio (ele escreveu antes de 2000). Tenho trabalhado outra vez a minha leveza, desde que percebi que quer me zangasse muito quer me zangasse pouco as transformações (na vida desta companhia, ou na minha) não iam por aí [pela zanga]. Não valia a pena esgrimir [argumentos] de uma forma tão aguerrida, tão voraz como eu julguei que era indispensável fazer.

A Barraca, em que trabalho há 38 anos, teve uns primeiros dez anos com alguns problemas, como todos, mas com uma grande aceitação da crítica e do público. Depois, quando se percebeu que havia algumas ambições relativamente à transformação daquele grupinho da Rua Alexandre Herculano numa coisa mais séria, com um discurso próprio e determinado, quando foi preciso defender a companhia, perdi a frescura. Perdi quase a paciência. E foram 20 anos de uma dureza sem nome.

O que é que a fez escolher este projecto ao qual se entrega 38 anos, 20 dos quais com essa dureza sem nome, como lhe chama?

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Eu tinha percebido, com certeza absoluta, que queria fazer um teatro que não era o teatro que se fazia em todo o lado.

Posso dizer uma coisa que parece cultural mas não é?

Pode.

Quando os espanhóis saíram de Portugal, em 1640, deixaram uma herança de teatro espanhol. Que ia do péssimo ao genial, do teatro dos pátios (a maior parte, não prestava para nada) ao Calderón [de la Barca], ao Tirso de Molina, ao Lope de Vega. Quando chegaram os iluministas, e a inteligência tentou mudar o paradigma do teatro, a primeira coisa que fizeram foi perseguir o teatro espanhol. Porque era uma herança de ocupação e de concessão ao gosto do público. Defenderam o neoclássico, o arcádico. Importaram o teatro francês, a ópera italiana. Compraram peças a Molière, a Goldini, óperas ao [libretista] Metastasio. Mas o teatro português perdeu alguma coisa muito importante ao mandar embora o teatro espanhol. Virou as costas ao Século de Ouro. Havia o medo de que o povo gostasse, que ficasse uma coisa popular. Há uma distância enorme entre Lope de Vega e Reis Quita. Boa literatura não é bom teatro. Quem é que decide o que é bom e o que não é?

Alguém como Peter Brook diz-nos que o inimigo do teatro é o aborrecimento. Esse equilíbrio entre fazer uma coisa que tenha um sentido elevado (como se dizia nessa altura) e fazer uma coisa que não aborreça, e que faça rir e que faça chorar, que é muito do que se pede ao teatro, e ao espectáculo, é muito difícil. Esse conflito, A Barraca tomou-o sempre pelo lado popular.

Não quiseram ficar confinados à elite, é isso?

É. Não vamos abraçar paradigmas que sejam maçadores e que fechem esta companhia num universo de que não queremos fazer parte. Foi uma batalha muito, muito difícil.

Pode-se dizer, numa linha, que A Barraca era o seu instrumento para mudar o mundo?

Não, não. Era o meu instrumento para não me sentir envergonhada perante mim por estar a fazer o que estava a fazer. Era o meu instrumento para fazer teatro. Não era uma coisa proselitista.

Falo de mudar o mundo porque o nascimento d’ A Barraca é em 1976. Dois anos depois da revolução. Era o tempo em que tudo era possível. E em que todos, nas suas áreas, experimentavam um fazer diferente.

Quando falo de fazer um teatro que eu gostava de fazer, há nisso um desejo de transformação. Das consciências das pessoas, da vida das pessoas. A cultura, o teatro é uma maneira de ir transformando o gosto, a sociedade. Mas sei que posso fazer muito pouco. Então, porque é que vale a pena? Porque é só assim que me sinto bem, feliz, que acredito no que estou a fazer. O teatro é essencialmente isso: vejam aqui uma história, completa (e na vida real não têm hipótese de ver uma história inteira, só fragmentada), que vos dá uma outra dimensão da vida que estão a viver. Não damos soluções. O conselho é o pior que o teatro pode fazer. Mas podemos expor a vida, a transformação da vida, os conflitos, as lutas mais profundas e mais superficiais dos séculos, na sua mais luminosa demonstração.

Voltemos ao Copperfield. Ainda não tenho uma resposta cabal para a frase. Quem é o herói?

Nunca tinha pensado nisso antes de ler essa frase. E nunca me tinha posto na posição de ser o herói da minha vida. Ao longo dos anos, depois de o público me dar um lugar na arte que escolhi, é que comecei a questionar-me se estava a ser a actriz que queria ser. Isso foi complicado.

Porquê?

Nesses anos em que me tornei dura, rebarbativa, menos simpática, porque estava realmente a lutar, porque me estava a ser tirado um espaço físico, artístico, moral para fazer o teatro que eu queria fazer, fui... não direi moralista, mas autoritária, dogmática. Não é politicamente. É na vida. Mutilei-me, às vezes. Mutilei a vontade do público. Perdi anos muito interessantes em que podia ter feito um repertório diferente, o de uma mulher na maturidade. Andei a fazer coisas que eram o teatro que A Barraca devia fazer.

Teve pena de não ter sido a Medeia, as grandes personagens femininas?

Tive. Tive pena de não ter feito um repertório que as actrizes gostam de fazer. Os Tennessee Williams... Mas olhava para A Barraca e achava que esses sonhos — egoístas — não cabiam neste projecto. Mas cabiam.

Fui-me libertando desse peso, do peso da afirmação de um projecto transformador, instigador.

Foi um tempo em que esteve concentrada na função de directora da companhia e menos na de actriz.

Exactamente. Eu não tinha percebido que podia ser as duas coisas.

No filme, a sua personagem conta ao miúdo da sua experiência política. Como é que a política entrou na sua vida?

Eu tinha 13 ou 14 anos quando foi a eleição do Humberto Delgado. O meu pai foi apoiante do Delgado, fez com ele a campanha.

O seu pai era político?

Não. Passou a sê-lo. Era um funcionário do Ministério do Ultramar, um homem com um grande anseio de liberdade. Depois do apoio à candidatura de Delgado, perdeu o emprego. Exilou-se na Bélgica. Quando vinha cá, era preso. Teve o resto da vida massacrado e não conseguiu reorganizar-se.

Foi vê-lo à cadeia?

Fui ao Aljube. E depois a Caxias. Esteve preso quatro vezes. Quando saiu de Caxias, a tensão arterial estava muito, muito baixa. Esteve mal. Os meus pais estavam separados. Mas a minha mãe, se sabia que estava preso, mobilizava-nos para o apoiarmos. Quando saiu, ainda nos anos 60, fazia parte daquele grupo de pessoas que iam para a Argélia, vinham da Argélia... nunca percebi muito bem esse projecto, mas sei que se empenhou nele. Portanto, para mim, foi fácil perceber o que era o fascismo.

Havia também conversas, um tom proselitista, ou não era preciso?

Não era preciso. Era fácil perceber. O meu irmão andava no colégio Portugal, na Parede, cujo director também era um antifascista. Eu, na faculdade, andei à volta da associação. Entrei em 1963, estava a faculdade numa convulsão [na sequência das lutas de 62]. Então, aquilo foi como respirar.

Fez política activa?

Fiz, enquanto estava na faculdade. Já no teatro, vieram as eleições de 69, colaborei nas eleições de 69. Distribuía papéis, ia trabalhando o meu sentido de liberdade e os porquês desse sentido. Nunca estive enquadrada em nenhum partido (o meu irmão, sim). Tinha as opções todas feitas.

O que é que queria fazer com a sua vida quando foi para a faculdade estudar Românicas?

Escrever. Basicamente, escrever.

Publicou?

Havia uma colecção pequenina, a Best-Seller, que resolveu publicar um livro de poesia meu. O David Mourão Ferreira foi meu professor. E o Urbano [Tavares Rodrigues] e o [Lindley] Cintra e o [Vitorino] Nemésio. Tenho livros de poesia do David Mourão Ferreira autografados. No primeiro ano, achava que ia ser escritora, no segundo achava que ia ser escritora e actriz, e no terceiro achava que ia ser actriz. Olho para aquilo e penso: “É a história da minha vida.”

Em três anos, em três livros.

Em três dedicatórias.

A palavra é determinante para um actor. Mas não é a sua voz. É a voz de outro a que dá voz. Escrever é outra coisa.

É. Senti no teatro que era muito mais certa a comunicação que estava a ter com palavras de outros, e com o meu investimento emocional, com o que eu dava e valorizava o texto. Afinal, não precisava de escrever. Se calhar, não tinha nada para dizer.

O que é que antes dizia, quando escrevia?

Havia um grupo de que gostava muito, a Beat Generation. O Kerouac, o Ginsberg, o Carver.

Vida crua.

Sim. Esse grupo correspondia muito à minha sensibilidade e maneira de ser. Fui percebendo que a minha necessidade de comunicação se cumpria melhor a interpretar do que a escrever. Dava-me mais prazer fazer um recital de Cocteau do que escrever as minhas coisas. Frequentava os grupos da Natália Correia. Quem começou [a frequentar esse meio] até foi o meu irmão. Eu estava mais resguardada [riso]. Não me deixavam andar por onde eu queria. Era menina.

Pertence a uma geração em que as meninas eram virgens até tarde. Idealmente até casar. Ainda mais num quadro burguês. Há qualquer coisa desta educação que fica inculcada na pessoa. Conte-me quem foi essa menina.

A minha avó foi a pessoa com quem cresci, com quem aprendi a boa educação. A minha mãe vivia connosco, mas a figura maternal era a figura da avó. Tive uma mãe que foi mãe com 20 anos. Era mais próxima da minha mãe como irmã do que como filha. Só quando comecei a ser mais velha é que a reconheci como mãe. Ainda que a minha educação tenha sido tutelada pela minha mãe em termos de gostos, em termos de cultura.

A década de 60 foi de ruptura, de liberdade. Os valores começaram a ser outros.

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Depois de Maio de 68?

Antes. As raparigas de Letras fizeram o seu 68 em 64, em 65. O que se estava a passar era muito forte. As greves de 62. As lutas de 65. A luta antifascista fez com que as raparigas e os rapazes se aproximassem. Houve uma ruptura com a separação dos géneros. Agora, eu tinha vagamente a dúvida se isso estava bem.

Ou se estava a transgredir...

E se a transgressão era um erro. Isso acompanhou-me durante os quatro, cinco primeiros anos de teatro. As eleições de 69 ajudaram-me a perder essa coisa do: “Isto será bem, ou é só indisciplina, galderice?”

Esse é o lado persecutório da educação.

Sim. Vamos voltar à educação do antes do 25 de Abril: politicamente, eu sabia que não era como Salazar e a ditadura queriam, que não era como Hitler quis. E fui-me informando, fui sabendo. Mas do ponto de vista do comportamento tinha algumas dúvidas se não era tudo mais tranquilo e feliz dentro dos padrões que estávamos a ultrapassar.

Estava a vida, dentro de casa, dentro de si, a latejar. No filme, quando o miúdo assiste a uma discussão que a Rosa tem com a família, diz: “Eu achava que a minha família era fodida, e afinal a tua...” A dela que parecia muito composta. Adoptando o palavrão, todas as famílias são fodidas, à sua maneira?

Pois, [pergunta] se a família não é uma estrutura repressora? Cada um sente a sua liberdade e o seu anseio de liberdade à sua maneira, e a família quase sempre cerceia essa liberdade. É muito difícil encontrar essa harmonia. A família é uma estrutura de defesa, dificilmente abre brechas na fortaleza que é. E a liberdade abre sempre brechas. E torna essa fortaleza numa estrutura mais frágil.

Rosa reconstitui esse ideal de família com um jovem rapaz, cuja família é desestruturada e que tudo o que quer é uma muralha. Se calhar, é porque é uma coisa escolhida e construída e não tem nenhum dos problemas que a família de origem tem...

Sim. Eles estão a pôr as primeiras pedras, e aquele terreno é tão deserto... Ela não tem ninguém em quem possa confiar, ele não tem ninguém, mesmo. E aquilo está tudo a nascer, aquela confiança está toda a nascer.

Nunca perseguiu, para si, na sua vida, o sonho da família estável?

Não. Mas na primeira fase do meu primeiro casamento era isso que desejava. Era o tal sonho da minha avó [riso]. O que me apetecia era levar o mais longe possível a minha liberdade, a minha vontade de fazer... mas com uma casa, um marido, filhos sólidos, um emprego. Foi por pouco tempo, cinco anos, que desejei muito isso.

O filme é também sobre o envelhecimento. É duro para si envelhecer?

É, muito.

Tem 70?

Tenho. Tive sempre um conflito muito grande com a idade. Está mal feito, mal pensado! Devíamos chegar à maturidade, ficar assim, e quando já tivesse passado o tempo, desaparecíamos. O envelhecimento, a doença, a dor são coisas muito más.

O que lhe pesa são as mazelas do envelhecimento? É não ter a mesma frescura?

Se não houver mazelas, não faz mal nenhum. O pior é a perda de energia, de vontade, de curiosidade. Desde sempre tive horror à velhice. É uma cavalgada inexorável para a morte. E a malta anda aqui a apagar velas e a cantar os parabéns, muito contentes, e não percebe que está a ir para velha [riso]. Custa-me sobretudo a ideia de morrer. Tenho imensa pena. Tenho quase a certeza que na base de eu querer ser actriz está achar que viver uma vida é pouco. Durante dois meses estou ali a viver outras coisas, a aprender outras coisas. Aquela vida é mais real para mim, mais desafiante, mais interessante do que a minha.

Porque ilude o medo de morrer?

Porque ilude o medo de ter só esta vida. É muito injusto, há muita coisa à nossa volta que nos desafia e que podíamos experimentar.

Foi dizendo várias palavras que sublinhei. Quer escolher uma para terminar? Uma palavra de que goste e que seja uma afirmação de vida.

Leveza. Passei a dar mais valor à leveza e a fugir a tudo aquilo que ma possa tirar. Outra palavra de que gosto muito é “alegria”. A alegria está perto da santidade. (Sou agnóstica desde os 13 anos, as pessoas riem-se quando digo isto...) Não se pode ser alegre no mal. Só se consegue ser alegre no bem. Fujo a sete pés de qualquer coisa que me tire a leveza e a alegria. Só quero isso.     

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