Em Veneto, a fotografia de Guido Guidi fala do mundo

A exposição Veneto é muito mais do que a inauguração de uma nova galeria lisboeta. Representa um acontecimento ao permitir um encontro irrecusável com um artista influentíssimo: Guido Guidi, que, do Norte da Itália, tem afirmado a fotografia como uma linguagem soberana, que interpreta o mundo.

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Foi uma das capas mais bonitas da Artforum (e a Artforum não prima pelas capa bonitas). Em Fevereiro do ano passado, uma fotografia de Luigi Ghirri (1943-1992), mostrava uma cena banal nas imediações de uma zona balnear: uma rapariga e uma mulher em interacção aparente e, ao fundo, a aproximação alheia de uma mulher mais velha.

Era uma imagem magnífica, pela composição, pelo contraste entre o branco da areia e o azul do céu, pela relação entre as escalas. Mas sobretudo pelo que a sua beleza, muito discretamente, sugeria: um reencontro com as fiçcões e os aspectos poéticos da realidade quotidiana. Citando o próprio Ghirri, aquela imagem, como todas as que integraram Kodachrome, o livro dedicado à sua obra que a editora MACK publicara em 2012, manifestava e consumava um desejo: dizer a identidade real do homem, das coisas, da vida com as imagens do homem, das coisas, da vida”.

Encurte-se estre introito, que já vai longo. O artigo na Artforum tinha, claro, um mote. Uma retrospectiva em Roma, parecendo assinalar, assim, a recuperação de um artista influente e esquecido. Mas Ghirri não é o único de uma “geração” de fotógrafos italianos que a arte contemporânea tem vindo tímida e desconfiadamente a redescobrir. Na Rua de São Mamede, em Lisboa, a Galeria Pedro Alfacinha estreia-se com a exposição Veneto que proporciona, a partir de hoje ao público, o encontro com fotografia de outro nome italiano: Guido Guidi, nascido em Génova em 1941. Passe o cliché, trata-se de um acontecimento. Conte-se, por isso, a história que lhe dá um contexto.

“Criei com estes artistas, desde muito cedo, uma afinidade e uma ligação livre do trabalho dos curadores”, revela Pedro Alfacinha que trabalhou na edição Kodachrome. “Por razões diferentes – um já morreu, o outro é um maverick – eles foram sempre muito permeáveis a agentes exteriores e no caso do Guido sempre me chocou a sensação de que o seu trabalho não estava a existir da maneira certa. Não é que tenha exposto pouco, mas há uma insegurança no mundo da arte em relação ao seu trabalho. Há uma tendência para ligar o trabalho dele a motivações ou a temas específicos como a arquitectura ou, por comparação, a outros artistas, o que é horrível. O Guidi não é o [William] Eggleston dos pobres!”. A irritação de Pedro Alfacinha não é gratuita, nasce do conhecimento da história e de histórias: “Antes do Thomas Struth, ele já tinha feito imagens de pessoas a olharem para a arte. Sabe-se que a Becher e a Hilla Becher estudaram o seu trabalho a fundo. A sua influência é assumidíssima em vários artistas alemães, mas não se fala nela”.

Respeito pela coisa retratada

Continue-se a contar a história por de trás de Veneto e das imagens que a constituem. O galerista viajou até Ronta, em Cesena, para estar com o artista. Passearam e almoçaram juntos, conversaram muito, houve até tempo para um jogo de bola com o neto de Guidi. E ao fim de dez dias, chegou a carta-branca: “Fui lá para o entender, estabeleci uma relação de confiança. E definimos para a exposição um dispositivo muito simples”. Em 2013, Cinque paesaggi, 1983-1993, em Roma, tinha explorado o tema da paisagem, mas Alfacinha preferiu evitar o lado preciso, frio, analítico das obras dessa exposição, e privilegiou o que considera mais interessante na fotografia de Guidi: “A sua ‘italianice’. O lirismo, a cor com que trata tudo à sua volta, o modo como utiliza a linguagem da fotografia para interpretar o mundo. Ao fim desse período, identifiquei os trabalhos que me interessavam. Não quis mostrar as obras que o aproximam à fotografia alemã. Isso já toda a gente fez, mas o lugar que onde ele viveu e vive”.

A região de Veneto tem a sua capital em Veneza, mas não há gôndolas, canais ou turistas na exposição, que reúne obras realizadas entre 1983 e 1986. A primeira “série” inclui imagens do Monte Grappa, onde se travaram algumas das mais terríveis carnificinas da Primeira Guerra. Vê-se o calcário esventrado, branco e cinzento, branco sobre cinzento. Guidi deixa à vista as marcas dos homens, feitas com obuses e graffiti: túneis, mensagens, símbolos, crateras. Não há monumentalidade. Depois, a fotografia desce às vilas, às ruas, aos edifícios, à vida como era à volta do Monte. Um mundo que acabou?

“Eu acho que não”, responde Pedro Alfacinha. “Claro que as fotos são claramente datadas, mas essa ‘italianice’ está lá, eu vi-a, vivi-a. Toda a região do Norte de Itália, de Veneza a Génova, é uma espécie de mega-metrópole. Não há interrupção no espaço e não há natureza. Todo o território está a ser trabalho. E há uma sensação de urbanidade muito bizarra. Não há diferenças entre o jovem genérico de Milão e o jovem genérico de Ravena”. Mas atente-se, agora, na Veneto representada por Guido Guidi nos anos 80. Intui-se o afecto pelos lugares, pelas pessoas. O artistas envolve-as, embora mantendo-se à distância das suas acções, dos seus movimentos. Veja-se a foto das mulheres que lavam um carro numa rua sobre a qual se debruça um estendal. Ou aqueloutra, de uma mulher que apoia o braço num carro, à espera. “A fotografia de Guidi exprime um interesse por tudo o que é banal, marginal, tangível, e uma investigação dos princípios que guiam a fotografia, a visão e a representação”, diz o curador e crítico italiano Francesco Zanot, mas, acima de tudo, qualquer uma das suas fotografias, conclui, é “um acto de respeito pela coisa retratada”.

Falar deste mundo

Para o espectador, a relação com o cinema pode ser uma porta de entrada na obra de Guido Guidi. Pedro Alfacinha reconhece-a como legítima, revelando, por exemplo, que Deserto Vermelho (1964), de Michelangelo Antonioni, foi rodado às portas da casa do artista, mas a fotografia é a fotografia. Não é cinema. Zanot sublinha a importância destas distinções – “Este trabalho é sobretudo ‘fotográfico’, tem a ver com a fotografia, as suas imagens estão sempre a dizer-nos isso” – sem deixar de admitir justeza de um adjectivo: “Sim, podemos dizer que o seu trabalho é, por vezes, cinemático. Ele cria sequências com fotografias ligeiramente diferentes do mesmo assunto, que se distinguem porque foram feitas a partir de ângulos diferentes ou em momentos diferentes. Estas séries [de Veneto] podiam ser variações cinemáticas, pois o espectador pode ter a impressão de que se move entre objectos ou situações ou de que está a assistir ao desenrolar de uma cena”. Falar de Antonioni não é, todavia, despropositado. “Há coisas no seu cinema que se encontram nesta fotografia. Uma austeridade ostensiva, um interesse compulsivo por tudo o que é banal e esquecível, a ausência de uma narrativa linear, a presença de um conjunto de cenas individuais que pode ter alguma coisa em comum”.

Já a relação com a arte conceptual é mais complexa. A biografia de Guido Guidi cruza-se com a actividade de vários italianos associados a essa movimento (Giuliano Della Casa, Franco Guerzoni, Franco Vaccar) e o seu trabalho é uma reflexão sobre a fotografia, mas, diz o crítico italiano, é provável que ele não reconheça a relevância dessa influência. “O seu trabalho faz um elogio à democracia. O Walker Evans, o Edward Ruscha e a pop art foram, para ele, muito mais importantes, assim como a arte informale, de que algumas obras na exposição podem ser consideradas tributos”. Aproveite-se a ocasião para um regresso a Veneto. Sobre esta, revela o galerista: “As fotografias são provas de contacto, em grande formato, o que as torna absolutamente magnéticas, mas a montagem é muito tradicional. Tentámos replicar o processo de selecção. Está montada para que as imagens permitam estabelecer relações entre si”, Fundamental para o galerista é que Veneto introduza a obra de Guidi ao público português e, em simultâneo, afirme a autonomia da fotografia, a sua absoluta independência da pintura, da arquitectura, entre outras disciplinas, como arte fácil e difícil, como linguagem que interpreta o mundo, que parece falar de tudo e de nada. Para aclarar o seu ponto de vista, Pedro Alfacinha sugere a leitura de duas comunicações apresentadas pelo artista inglês Paul Graham. Escolha-se a apresentada há cinco anos em Yale. A fotografia aparece descrita assim: “(…) é algo real, que não existia antes de a criares: uma obra de arte, de sensibilidade, que fala deste mundo e do outros seres humanos nesse mundo”.

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