Portugal, o solo minado de Filipa César

Golden Visa tem tudo a ver com território, como é habitual na obra de Filipa César. Um território alienado, ocupado, fruto da história do homem. A linguagem é fulcral para entender o que se passa neste projecto. Os sentidos são quase sempre ambíguos. A artista fala-nos do seu olhar sobre o país que é o seu, mesmo visto de Berlim, onde vive.

Foto
Rui Gaudêncio

Com entusiasmo, sem grandes interrupções, no meio da montagem da sua mais recente exposição em Lisboa, Filipa César tem um olhar doce que contrasta com o rigor daquilo que afirma. “Sou uma artista, não sou uma erudita”, dirá já quase no fim da entrevista.

“Só através da arte contemporânea é que estes projectos fazem sentido.” E contudo, o seu discurso é quase o de um mestrando ou doutorando. Fundamentado, argumentativo, percebe-se que estudou exaustivamente os temas que se propôs tratar e que, a partir deles, construiu a obra plástica. Como tantas vezes acontece – recordemos o magnífico Le passeur, projectado na Fundação Ellipse em 2007 – é de território que aqui se trata. Nessa altura, a paisagem da raia portuguesa que, 40 anos antes, tinha sido passada a salto por tantos fugitivos à PIDE. Agora, de um território que oferecemos ao estrangeiro em troca de dinheiro; não os golden visas de quem quer apenas uma porta de entrada para a Europa, mas a própria terra, física, real, a explorar por quem venha. E pague.

“Inicialmente esta exposição era para se chamar Solo Minado, que é o nome da peça principal. Teve origem na minha pesquisa em torno do cinema da Guiné-Bissau. Li imensos textos sobre o trabalho do Amílcar Cabral”, diz. “Uma das coisas que mais me interessou foram os escritos dele sobre agronomia, feitos ainda antes da guerra de libertação. Tem muitos trabalhos sobre a erosão em Cuba, no Alentejo, e começava sempre por colocar a questão do que é que era o solo.” A peça, um filme que passa em loop sobre um estrado de madeira, mostra a artista a ler os textos mencionados enquanto, atrás, passam imagens diversas: a terra, paisagem, amostras de rocha.

Filipa César enumera várias definições de solo citadas por Amílcar Cabral: “uma patologia da rocha”, “o resultado de transformações químicas”; e finalmente, a que mais lhe interessa, “o resultado de um processo histórico, fruto da acção humana e de decisões políticas”. A partir daqui, perguntou-se porque é que Portugal negligenciava o próprio solo para ocupar outros solos. “O que me interessou para este projecto foi pegar neste conhecimento dos anos 40 e perguntar-me como é que ele poderia ser reactivado. E o Solo Minado é esta ponte, puramente especulativa, que eu apresento no filme e que é focada numa situação muito concreta de hoje: partindo da licença que foi dada a uma empresa canadiana para a exploração do ouro em Portugal, de que modo é que é possível actualizar essa leitura antropológica que o Amílcar Cabral fez do solo como resultado de uma acção política?”

O solo como um livro
Na exposição da galeria Cristina Guerra, além do filme, há uma série de documentos que estão dispostos por cima do estrado de madeira. O estrado, na realidade, reproduz à escala o perímetro que foi concessionado à empresa canadiana. “Quando eu estava com estas coisas na cabeça, soube que em Montemor-o-Novo, no lugar da Boa Fé, decorriam explorações mineiras. Fui lá. E encontrei uma situação interessante: uma equipa de geólogos a fazer prospecções nesse solo. Através de perfurações, fazem um arquivo do solo, uma biblioteca do solo. Tratam o solo como um livro, um espelho, um documento através dessas camadas que vão tirando. Depois foi necessário obter as autorizações para visitar aquilo. E no fim, cozinhei o filme do modo mais simples possível; é claro que é mais ensaístico do que documental, visto que tenho sempre este lado especulativo que é o meu.”

Esta ideia do “arquivo do solo” e a relação particular que, a partir dele, se estabelece com a paisagem como resultado de um processo dialético estava também presente em Le passeur. Filipa César acrescenta ainda uma outra peça, Memograma, feita para o BESPhoto, que era sobre o sal como cristal, com base no estudo da história de Castro Marim que, como é sabido, era simultaneamente lugar de degredo e de salinas. Mas, acrescenta, “em Golden Visa, este estudo vai mais fundo, no sentido literal da palavra: há uma perfuração, um entrar dentro da terra. E existe uma qualidade estética no trabalho dos geólogos que nem sequer é procurada”, diz, referindo-se às caixas onde os cientistas guardam as amostras de rocha extraídas, que também aparecem no filme.

Golden Visa, na realidade, já foi apresentado noutras ocasiões, em Paris e Madrid, nomeadamente. Numa dessas apresentações, o filósofo Michel Feher fez uma interpretação muito interessante da peça: “Ele disse que Portugal está agora numa situação pós-colonial, em que tem que ser explorado para pagar uma dívida. E isto foi uma coisa que aconteceu em todos os processos pós-coloniais: dava-se a independência, mas depois criava-se uma dívida que tinha que ser paga. Na Europa há agora esta política: livram-se dos des-creditados e dos desacreditados (muito interessante este duplo sentido da palavra inglesa “discredited”), mas depois convidam-se cidadãos desses países a re-entrarem na Europa, desde que sejam ricos. Eu não gosto da palavra rico, penso é que há exploradores e explorados! E por isso acabei por escolher este título que dá um sentido novo a toda a investigação. O título acaba por não ser um guarda- chuva, mas um elemento novo que dá outro sentido às peças todas que aqui estão.”

Entre estas peças, há também desenhos. Filipa explica que também a palavra "mina" tem um duplo sentido, “mina geológica e mina como arma: qualquer coisa que está enterrada, e que é, no fundo, a arma dos pobres. O Amílcar Cabral, a certa altura, aplica os seus conhecimentos agronómicos à definição de estratégias de guerrilha. Afinal, a mina está enterrada, também contamina os solos, torna-os impenetráveis e intoxicados durante períodos de tempo longuíssimos.”

No decurso da pesquisa acabou por ir falar com um especialista em minas, e descobriu uma série de imagens da época que digitalizou e usou na exposição. “Faço sempre uma intervenção nas imagens de arquivo: neste caso, um corte circular obtido por revolução em torno de um eixo. Mais uma vez, aqui está o duplo sentido de uma palavra com que eu gosto de jogar...”

Há duas fotografias na parede que mostram esse tipo de imagens intervencionadas. Na primeira, o monumento que assinala o massacre do Pidjiguiti, que desencadeou a luta armada na Guiné. Na outra, um cinema em ruínas. Sobre eles, inscrevem-se desenhos científicos de cristais, numa alusão ao sal de que falava antes.

Mas há mais: a imagem do cinema arruinado leva-nos de volta a essa investigação sobre o cinema da Guiné-Bissau, de que Filipa falou no início da entrevista, e sobre o qual trabalha há dois anos com a Cinemateca de Berlim. “O cinema da Guiné-Bissau tem isto de único porque é um cinema que vem desde a guerra de libertação. Não é um cinema anterior, importado da Europa; não, aparece mesmo com o início da guerra. Há uma aliança entre Amílcar Cabral e Fidel Castro, e o primeiro manda uma série de jovens para serem formados em Cuba: em medicina, em engenharia militar, e em cinema. Há quatro jovens realizadores que vão, isto em 1967; dois deles, Sana Na N’Hada e Flora Gomes, ainda estão vivos, e  tive o privilégio de os entrevistar.”

E voltamos ao arquivo, agora das imagens desses primóridos do cinema guineense. “Há um arquivo de filmes, muito destruido, uma ruína. No Kino Arsenal de Berlim, que é uma cinemateca aberta à contemporaneidade, o que nós (eu e o curador Tobias Hering) fizemos foi um projecto sobre esse acervo (que já não é considerado tecnicamente um arquivo, de tão destruído que está) e a sua própria deterioração. Só neste contexto, da arte, é que é possível reflectir sobre este material. Recuperá-lo é financeiramente impossível. As imagens que lá estão não têm nada a ver com as dos militares de esquerda, como o Matos e Silva, estacionados na Guiné e que filmaram o que viam, mesmo criticamente. Não; estas imagens são mesmo deles, dos guineenses.”

E finaliza, afimando que está a preparar um livro sobre o projecto.

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