No cultural, o direito do consumidor é nada

O capitalismo global converteu a classe média numa classe de consumidores a quem o Estado apenas concede o direito — menor — a reclamar sobre a qualidade dos serviços e dos produtos

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Na crónica anterior (Perguntas sobre Política Cultural, publicada a 15/08), abordámos a questão da “política cultural” de uma perspectiva muito centrada nas expectativas que os cidadãos têm relativamente aos Estados modernos e democráticos, e vimos como as várias instâncias dos aparelhos do Estado gerem, numa perspectiva de domínio, o incentivo “à cultura” num tom vago e susceptível das maiores perversões. Em detrimento desse significante tão fluido e oportunisticamente usado, opusemos o termo “cultural” — na bela expressão de Arjun Appadurai —, ou seja, as relações simbólicas, os imaginários, os legados materiais e imateriais entre as pessoas de uma comunidade, o seu passado, o seu presente e as expectativas que têm em relação ao futuro.

Num contexto de Estado-Nação, quando os cânones e a crítica instituídos possuíam uma autoridade que lhes permitia avaliar, separar, incluir ou excluir, e estavam associados a regimes cujas encomendas artísticas eram por si só uma garantia temporária mas canónica, a legitimação do que havia a incentivar, a apoiar, a adquirir podia ser discutível. Contudo, uma vez que se passava na esfera da alta cultura, acabava quase sempre por não o ser. Os tempos são de grande mudança e nada é certo, nem os cânones, nem sequer a autoridade da crítica. Esta vem sendo substituída no seu papel complementar de aceitação ou de ostracismo pelos parâmetros de natureza quantitativa: o retorno financeiro e a quantidade de públicos ou de compradores. Onde antes se podia afirmar (mesmo ao arrepio de uma leitura marxista da sociedade) haver uma divisão social em classes baseada na manutenção e na propriedade dos meios de produção — a burguesia, o povo, a classe operária, o campesinato, o proletariado, o lúmpen-proletariado (com os respectivos interesses, tão diversos, no campo cultural) —, temos hoje classes que se definem pela posse de capital financeiro, independentemente da sua origem, e pela posse do seu tempo — o que inclui a possibilidade de parte desse tempo ser ocupada pelo trabalho com retorno de rendimento e possibilidade de consumo. Assim, as anteriores classes sociais referidas foram substituídas por classes de consumidores muito ricos, de consumidores de sobrevivência (classe muitas vezes designada como classe média), e de pobres ou excluídos que nada possuem — na justa expressão de Maria Gabriela Llansol, “os sobreviventes”.

Já não há povo — afirmam-no, numa pequena obra (Qu’est-ce qu’un peuple?), autores como Alain Badiou, Pierre Bourdieu, Judith Butler, Jaques Rancière, entre outros. Já não há povo, embora possa haver populismos coerentes com os consumidores globais. Assim, Alain Badiou, por exemplo, afirma: “A verdade é que ‘povo’ é hoje um termo neutro, como tantos outros vocábulos do léxico político.” Ou: “Mediante o simulacro político do voto, ‘o povo’ composto de um ajuntamento de átomos humanos confere aos eleitos a ficção de uma legitimidade.” Ou ainda: “A classe média é ‘o povo’ das oligarquias capitalistas.”

Também “cidadão” é um termo em desuso, apenas administrativo, já que o número fiscal é a única identidade que o Estado reconhece. Aquele cidadão que era a expressão revolucionária do membro da pólis e a pessoa do Estado moderno viu esvaziado o seu estatuto de reclamante, passando a ter apenas o estatuto de consumidor.

Sendo assim, neste conflito entre os membros de uma comunidade e o Estado, quem é este “nós” que já não é povo nem pode falar, mas em nome de quem se reclama o cuidado e o investimento do Estado “no cultural”? E com que argumentação? Muitos têm evocado a rentabilidade das actividades culturais. Quem o faz parece não entender que os números indicados pelas auto-denominadas “indústrias criativas” são essencialmente números da indústria do entretenimento, cujos mecanismos — maioritariamente de natureza virtual — foram de fácil implementação, resultando de uma associação entre multinacionais de comunicação, bolsas de valores e conteúdos virtuais de consumo rápido. Para termos uma noção quantitativa daquilo a que nos referimos, veja-se o seguinte: em 2012, o conjunto das empresas de entretenimento e da indústria dos média arrecadou 1,7 triliões de dólares em todo o mundo. Espera obter, no ano de 2017, 2,2 triliões.

Ora, este argumento de nada valerá se a relação com o Estado ou com as empresas produtoras for exclusivamente uma relação de consumidores-pagadores. Pelo contrário há ainda a hipótese de esse lugar de meros consumidores ocupar outra posição, aquela que no passado cabia àqueles a quem se chamava leitor, espectador, ouvinte, actor, músico, cineasta, compositor, etc. Infelizmente, o mundo onde estas categorias faziam sentido e eram válidas está em colapso. E, exceptuando talvez os pobres — para quem “o cultural”, de facto, pouco importa, uma vez que antes dele, e prioritariamente, está a sobrevivência —, faria sentido para os sobreviventes que o cultural fosse, como deveria ser, integrado nos Direitos Humanos.

Enquanto classe média globalizada, estamos encurralados numa condição de consumidores a quem o Estado apenas concede o direito a reclamar sobre a qualidade dos serviços e dos produtos, em suma, apenas concede o direito do consumidor — um direito menor quando comparado com o direito de fazer ou de ver um filme ou uma ópera, de ler um livro, de conhecer um museu, de visitar uma exposição ou um parque científico.

Ousemos colocar-nos num lugar mais exigente — sendo ainda o de consumidor, só que o do consumidor herdeiro da crença de Diderot na transmissão do conhecimento, ou herdeiro da crença de Maria Gabriela Llansol na Comunidade. Ocupemos o lugar do cosmopolitismo vernacular, esse lugar difícil porque é minoritário e está em permanente estado de atenção, esse lugar que é necessariamente crítico e tantas vezes solitário mas que é também o único que legitima o conflito com o Estado pela reivindicação da dignidade do cultural. E recordemos que esta inclui o apoio financeiro. 

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Em 2012, o conjunto das empresas de entretenimento e da indústria dos média arrecadou 1,7 triliões de dólares em todo o mundo Miguel Manso
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