Decreto n.º 272/XII – azar nos jogos?

Está já publicado o Decreto da Assembleia da República n.º 272/XII, resultante das votações em 25 de Julho de 2014, que, à partida, parece menosprezar pareceres recebidos de entidades manifestamente idóneas como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, o Comité Olímpico de Portugal, a Confederação do Desporto de Portugal.

Esse Decreto aprovado pela Assembleia da República (apenas, e surpreendentemente, além naturalmente dos votos contra da oposição, com um único voto de discordância, na maioria, do deputado Ribeiro e Castro!) parece pretender ficar em consonância com a mais recente legislação Comunitária. Contudo, dado que essa transposição é mais aparente do que real e pode representar um perigo social grave no nosso país, agora só a sua rigorosa e mais cuidada regulamentação poderá minimizar os perigos que o diploma de autorização legislativa poderá eventualmente permitir. Está agora para promulgação do Presidente da República, que ainda pode também agir pelos instrumentos à sua disposição.

Pareceu esquecer-se que o modelo português em vigor já tinha sido considerado inteiramente compatível com o Direito Comunitário pelo Tribunal de Justiça da UE. Portugal tem justificado a sua posição não só pela protecção e defesa dos interesses das pessoas, mas também pela prevenção da fraude e do crime. E tem-no feito de uma forma impecável, que, agora, pode ficar comprometida e desabar.

Embora não se duvide das boas intenções moralizadoras dos jogos de fortuna e azar e vários outros, corre-se o rico de entregar os lucros de uma modalidade popular (mas reconhecidamente de potencial viciante), fundamentalmente aos promotores dos jogos, assim ultrapassando os benefícios sociais relevantes até agora obtidos na acção social da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e na promoção do desporto, bem como de inúmeros programas sociais no âmbito de vários ministérios e assegurados pelas receitas dos jogos da Santa Casa, que são distribuídas por todos.

Certamente não será sensato alargar demasiado a oferta e a oportunidade de jogos a dinheiro, entregando-a a um conjunto de operadores privados e sem que a comunidade tire daí a devida, e mesmo socialmente justa e indispensável, compensação.

Importa prevenir a possibilidade de uma concorrência agressiva dos interesses puramente comerciais e não deixar enfraquecer a obra social de tantas instituições, como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e os apoios ao desporto nacional em sentido amplo e eclético.

Importa, por outro lado, que a tributação dos jogos de fortuna e azar seja, pelo menos, mais severa do que a tributação geral, e não beneficiária de um imposto especial mais favorável para os jogos on-line. Certamente os detentores do dinheiro irão procurar agir onde lhes seja pessoalmente mais rentável, cabendo aqui ao Estado, como representante dos interesses da comunidade, fazer o necessário controlo e estabelecer as adequadas limitações, nomeadamente quer no que respeita à publicidade, quer no que respeita às características dos operadores. A multiplicidade de controlos, manifesta sobretudo no artigo 2.º, não se compromete, como devia, com a defesa intransigente da importância social dos jogos e o controlo do vício que sempre os acompanha, actualmente sob controlo do Estado, na defesa do interesse nacional. O lucro não pode aqui ser fundamentalmente para o explorador, que logicamente procurará atrair para os seus jogos o maior número possível de jogadores e apostadores e, assim, maximizar os seus lucros. Pelo menos que se garanta uma equilibrada e justa repartição desses lucros, sobretudo num momento em que se alarga consideravelmente o universo dos jogos e apostas legalmente possíveis. E é seguramente inaceitável que tudo venha a processar-se sem o devido controlo do Ministério das Finanças.

No caso específico do desporto, o importante é que os lucros sejam preferencialmente pagos para as Organizações Desportivas e não para os praticantes (que têm já as remunerações garantidas) e, assim, melhor se combaterá a fraude, se protegerá melhor a integridade física e moral dos desportistas e se assegurará a integridade e verdade das competições. Como é evidente, se não houvesse quem organizasse as competições desportivas, não haveria apostas: e é seguramente injustificado deixar tudo ao sabor da livre concorrência.

A liberdade não é só ter direitos, mas implica obrigatoriamente deveres e aqui a missão social não pode ser menosprezada. Esperemos que a regulamentação clarifique aquilo que se apresenta hoje, face ao Decreto aprovado, como perigoso e verdadeiramente inadequado. Médico cirurgião

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