Negócios à EMEL

Há um mês o PÚBLICO noticiou a celebração de contratos de mobilidade eléctrica em várias cidades do Brasil. Trata-se de um projecto integralmente desenvolvido por portugueses sob a coordenação do Centro de Excelência para a Inovação na Indústria Automóvel (CEIIA), dando seguimento a uma iniciativa do Governo Sócrates e que contou com o envolvimento do anterior executivo da Câmara Municipal de Lisboa (CML), ao ponto de ter chegado à fase de teste e apresentação pública na Semana Europeia da Mobilidade (SEM) de 2013.

Não fosse o caso deste projecto ter soçobrado em Lisboa e este facto passaria tranquilamente para o arquivo das notícias sem seguimento. Importa por isso analisar por que o que não se concretizou em Lisboa se vai agora realizar no Brasil.

No início do anterior mandato autárquico estava em curso em Lisboa um processo de concurso para a instalação de um serviço de bicicletas de uso público, à semelhança dos que já existem em inúmeras cidades europeias. Como infelizmente é frequente entre nós, os responsáveis pelo seu lançamento não atenderam a certas especificidades da cidade nem ao modo como estes sistemas se foram desenvolvendo, propondo um caderno de encargos com exigências que implicariam custos inaceitáveis ou eliminariam potenciais concorrentes. O “rigor” foi de tal ordem que a dimensão da malha de rede do cesto da bicicleta e a altura do poste da estação foram argumentos suficientes para eliminar dois concorrentes. Por fim, restou a proposta da JC Décaux (JCD), o gigante da publicidade em meio urbano que em Lisboa passou a controlar 70% do mercado publicitário da capital, com a recente aquisição da anterior concorrente CEMUSA.

Quando tudo parecia correr pelo melhor dos mundos, eis que se “percebe” que a proposta da JCD implicava um investimento de 3,5 milhões de euros (mais IVA) por ano, durante os dez anos da concessão! Perante a oposição de alguns vereadores, a adjudicação nestas condições foi suspensa, até porque violava o exposto no caderno de encargos quanto ao serviço não ter custos para o município.

Mas o que seria um procedimento normal de anulação do concurso, acabou por se transformar numa verdadeira saga. Durante mais de um ano andou-se a negociar com a JCD e potenciais patrocinadores, para que a primeira baixasse os custos (o que acabou por fazer, reduzindo a cobertura do serviço e o número de estações e bicicletas à disposição) e os outros suportassem esses custos em nome da CML. O custo mínimo a que se chegou foi de 7,5 milhões (mais IVA), mas a crise económica entretanto instalada não permitiu encontrar quem o suportasse.

A partir deste momento foi-se trabalhando numa solução alternativa que não privasse Lisboa de um serviço de bicicletas públicas, até porque isso se enquadrava na política de mobilidade definida pela CML e nos novos estatutos da EMEL (entretanto aprovados), onde a empresa municipal passava a ter por objecto a mobilidade urbana e não apenas o estacionamento.

Foi nesse âmbito que se desenvolveram contactos com a Prio.e (a empresa – do grupo Martifer - que tinha assumido a liderança do projecto de mobilidade eléctrica ao tempo do governo PS), o CEIIA (centro que tinha desenvolvido um protótipo inovador de bicicleta eléctrica que permitia o seu uso público em segurança) e a Tekever (uma empresa de software que construiu um sistema único de acesso e registo do uso da bicicleta em tempo real).

Ao fim de um ano de trabalho o projecto estava suficientemente maduro e testado a ponto de se poder passar à fase contratual. Tendo em conta os elementos absolutamente inovadores do projecto – quer ao nível das bicicletas e estações de recarga, quer do sistema de acesso, controlo e gestão do seu uso – considerou-se que o melhor enquadramento legal para a sua implementação seria o de uma parceria com a EMEL, pois não faria sentido lançar um concurso público quando apenas as empresas que tinham desenvolvido o projecto poderiam responder aos quesitos pretendidos.

Estávamos no início de 2013, mais do que a tempo de o serviço público de bicicletas eléctricas da cidade de Lisboa iniciar o seu funcionamento na SEM desse ano. Pura ilusão. Apesar das dezenas de milhares de euros gastos em consultoria jurídica por parte da EMEL para formalizar o contrato de parceria entre os quatro parceiros envolvidos - e do acordo que este mereceu por parte de todos os intervenientes -, o presidente da empresa municipal achou por bem não agendar a sua apreciação em conselho, conseguindo com isso protelar a sua concretização até às eleições autárquicas e posterior substituição dos vogais da administração que tinham acompanhado e apoiado o projecto. Só o interesse dos parceiros privados em não se deixarem abater por este expediente, e a sua profunda convicção de que este era o melhor projecto para a cidade, fez com que os mesmos assumissem na íntegra os custos de instalação de duas estações com seis bicicletas eléctricas durante a SEM de Lisboa, o que permitiu não só ao presidente da CML e alguns vereadores, mas a dezenas de cidadãos, testemunharem a sua qualidade e facilidade de utilização.

Mas se o sistema proposto era tão bom e tinha apenas um custo total de 1,5 milhões de euros para a EMEL (correspondente à fabricação e instalação das estações de recarga das bicicletas), por que razão foi boicotada a sua concretização? Se o sistema pôde ser vendido em várias cidades do Brasil – levando até o ministro do Ambiente e Energia a apadrinhar o acto – por que não servia para Lisboa?

Para responder a estas questões, teremos de regressar ao início deste texto. A JCD e os seus apoiantes na CML nunca se deram por vencidos, enquanto a Prio.e viu perder a sua posição dominante no processo quando se percebeu que não detinha as patentes industriais das bicicletas. Nestas circunstâncias, o contrato que estava para ser concretizado entre as partes definiu que seria o CEIIA a assumir as responsabilidades do projecto perante a EMEL, dado que não só detinha as patentes em causa como estava a concluir um protótipo de veículo eléctrico citadino, que poderia ser integrado num segundo momento do desenvolvimento do projecto de mobilidade eléctrica de Lisboa. Ora foi precisamente esta mudança de líder do projecto que levou à oposição do presidente da EMEL. Para ele, uma empresa com um capital de apenas 5 mil euros a liderar o projecto (como era o caso da Prio.e) não levantava quaisquer problemas à assinatura do contrato. Já um centro com um volume de negócios de milhões de euros não lhe merecia “confiança financeira”, como ainda lhe suscitava “sérias dúvidas” quanto à sua capacidade técnica para gerir um projecto deste tipo. Felizmente que o ministro do Ambiente e Energia, o governo brasileiro e as cidades que compraram o projecto pensaram de maneira diferente, o que permitiu que o trabalho desenvolvido e os custos suportados não tivessem sido em vão.

Se a estes factos juntarmos algumas oportunas “coincidências”, talvez se perceba melhor o que se passou.

O contrato de publicidade com a JCD termina daqui a meses. Com a posição de monopólio de que desfruta actualmente em Lisboa, fácil será vencer o novo concurso, até porque detém todo o material de suporte no terreno. Qualquer outro teria de o adquirir e instalar. Neste contexto, que custaria à JCD suportar os 1,5 milhões do novo projecto de bicicletas partilhadas, face ás muitas dezenas de milhões que lucraria com a nova concessão em Lisboa?

Mas o projecto era de bicicletas eléctricas - muito mais adequadas à orografia da cidade do que as normais – e envolvia o CEIIA e a Prio.e. Que fazer a estes parceiros? Como “vimos”, o CEIIA “não merece confiança” e quanto à Prio.e … integra-se o seu director-geral na nova administração da EMEL, assegurando desse modo o seu silêncio e mantendo o envolvimento da empresa no projecto.

E pronto, assim se lançou para o caixote do lixo mais de um ano de trabalho, dezenas de milhar de euros gastos pela EMEL, mais de um milhão suportados pelo CEIIA, e se atrasou em dois anos a implementação em Lisboa de um serviço de bicicletas de uso público, inovador e 100% controlado por entidades e empresas portuguesas. Em nome de quê? Do negócio com a JCD, que pelos vistos nunca terá verdadeiramente parado. Professor universitário. Vereador na CML com o pelouro da Mobilidade, no mandato 2009/13

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