Râguebi, ketchup e pontapés

Em 1970, quando tudo indicava que a carreira desportiva acabara, O'Reilly é chamado para salvar a pátria. Atrás dele leva mais cinco mil pessoas que correram para assistir ao seu regresso

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Tony O'Reilly é uma das grandes referências do râguebi irlandês e ficou para a história da modalidade sobretudo pela sua prestação como flanqueador nos British and Irish Lions, a quem dedicou as melhores jogadas da sua carreira. O desporto não foi, contudo, a única área em que o actual Sir Anthony O'Reilly se destacou e, de convites para integrar o elenco de um remake de "Ben Hur" até lugares de topo em grupos de comunicação ou na emblemática produtora de ketchup Heinz, todos os seus talentos contribuíram para que merecesse sempre a atenção do público.

A primeira vez em que o atleta fez as delícias de muitos foi em 1954, quando, deixando para trás os Old Belvedere e Leicester Tigers, se estreou como internacional no Torneio das Cinco Nações. Tinha 18 anos, distinguia-se pela sua cabeleira ruiva e virava do avesso todas as defesas que se opunham à Irlanda.

Um ano depois O'Reilly tornava-se o jogador mais jovem de sempre a ser recrutado para os Lions e afirmava-se em definitivo com o seu desempenho na digressão à África do Sul, ao marcar 16 dos pontos com que a equipa britânica venceu a selecção anfitriã, por uns intensos 23-22. O jogo ainda hoje é uma referência histórica da modalidade, não só pelo entusiasmo da disputa, mas também pela assistência recorde de 95.000 espectadores no estádio Ellis Park.

Quatro anos depois, em 1959, o irlandês volta a bater novo recorde, pelo Lions e por si próprio, ao marcar 22 pontos no tour pela Austrália e Nova Zelândia. Fora dos campos, também já caminhava para o estrelato: iniciara a sua carreira como solicitador e, nessa condição, apoiava os atletas da modalidade na reivindicação de direitos que sentiam negligenciados.

Se aos 30 anos O'Reilly já administrava a Direcção Irlandesa do Comércio de Lacticínios, mais tarde chegou a presidente da H. J. Heinz e, a certa altura, a generalidade dos seus interesses empresariais tornou-o o homem mais rico da Irlanda e o maior empregador do país. O râguebi ficava para trás, devido a algumas lesões e, sobretudo, a afazeres profissionais.

Em Fevereiro de 1970, quando tudo indicava que a sua carreira desportiva acabara e a Irlanda se preparava para defrontar a Inglaterra em Twickenham, eis que, da lista de convocados, o flanqueador Bill Brown lesiona o tornozelo. Está-se na véspera do jogo e é O'Reilly que chamam para salvar a pátria. Volta assim ao campo, quase sem pré-aviso. Atrás dele leva mais cinco mil pessoas que, mal souberam da substituição, correram a comprar bilhete para assistir ao seu regresso.

Se um dia antes Tony O'Reilly era conduzido na sua limusina até ao Clube de Artilharia para discutir o "pre-match" com amigos, poucas horas depois corria em chuteiras sobre o campo para disputar efectivamente a bola. O sucesso que o vinha acompanhando em todas as áreas da sua carreira teria beneficiado, contudo, de maior antecipação. Desprevenido, o irlandês perdera o ritmo e a energia exigidos a um internacional, e exibia então um corpo consideravelmente mais largo do que na sua juventude. Houve mesmo quem dissesse que um dos exercícios de aquecimento recomendados antes do jogo era o de "dar duas voltas ao O'Reilly".

Como se essa má forma não bastasse, o jogador passou quase toda a partida atordoado, na sequência de um chuto que sofreu na cabeça quando mergulhou aos pés do "pack" de avançados ingleses. "E já que estão nisso, porque é que também não dão um pontapé ao motorista dele?", gritou alguém da plateia, com sotaque irlandês. Passadas algumas décadas sobre o episódio, ainda há quem defenda que o comentário desse adepto tinha motivações anticapitalistas relacionadas com o facto de O'Reilly ser então director-geral da Heinz Europa, enquanto outros argumentam que o reparo provinha apenas de um automobilista ressentido com a má condução do motorista visado.

O que ficou como certo é que, apesar do seu inócuo desempenho nesse dia, Tony O'Reilly ainda conseguiu somar ao seu currículo a impressionante estatística de 16 temporadas consecutivas ao serviço da modalidade. Tinha apenas 33 anos e já se tornara uma lenda.

A partir do livro "Rugby Strangest Matches", de John Griffiths

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