Competição e felicidade: uma equação complexa

Uma sociedade onde tudo é calibrado para o despertar do lado mais competitivo do ser humano é uma sociedade tensa e insustentável.

A ideia de competição como algo bom, como um valor, está enraizada na cultura contemporânea. A ela se atribuem vários méritos como o progresso, o elevar de fasquias ou a meritocracia. E por isso se tenta incorporar a dimensão competitiva em tudo – nas profissões, no desporto, na arte ou no ensino. Essa aplicação dogmática do espírito competitivo à vida parece-me abusiva e equívoca. Logo à partida, será que nos torna mais felizes?

De facto, vencer uma competição pode tornar mais felizes os vencedores. Mas com que custos? É que não há almoços grátis e, para uns vencerem, outros terão de perder, para uns ficarem felizes, outros ficarão infelizes (veja-se o interessante estudo de Andrew Oswald e Matthew Rablen, de 2008, em que se prova que os vencedores de prémios Nobel, por comparação com os nomeados perdedores, acabam por viver mais anos). Os esquemas competitivos não garantem aumentos na felicidade média e podem mesmo aumentar a desigualdade na felicidade entre os indivíduos. A competição pode aumentar a ambição e os patamares de eficiência médios, mas será que são esses os valores mais importantes?

Podíamos pensar numa competição saudável que promovesse o bem-estar. Mas não creio que essa seja a regra. O que mais abunda é a competição que cega, que deixa as pessoas doentes quando perdem, insuportáveis de arrogância quando ganham. Uma competição em que tudo se faz em nome da vitória (sem honra nem moral) e onde facilmente se despreza e humilha os derrotados. Nada disso me parece merecedor de louvor. Infelizmente, a competição facilmente potencia o conflito e dificulta a harmonia.

Uma falácia muito apregoada pelos apóstolos da competição é a ideia de que ela é a “lei da natureza” e de que sem ela tudo fica amorfo e paralisado. A competição existe na natureza, mas é falso que seja a única força a operar (e é discutível que seja a dominante). Na natureza abundam os esquemas cooperativos e, no caso particular dos seres humanos, não há força evolucionista mais poderosa do que a nossa solidariedade para com os mais fracos ou a motivação para uma causa conjunta (em que aliamos vontades individuais para gerar uma grande vontade colectiva).

Talvez seja melhor pensarmos na cooperação como um mecanismo que também é capaz de aumentar os patamares de eficiência mas que promove a felicidade colectiva ao mesmo tempo. No fundo, somos todos muito mais iguais do que diferentes e a cooperação torna-nos mais próximos, enquanto a competição salienta e exacerba as diferenças. A cooperação é mais humanista. A competição é mais potenciadora da inveja, da idolatria e do individualismo.

O caminho para uma felicidade colectiva passa muito mais pela colaboração rizomática (no sentido de Christopher Kinman) do que pela competição desenfreada. Podemos até pensar num sistema de mercado que se mantenha concorrencial e adequado para a negociação descentralizada dos diferentes interesses mas que seja calibrado na direcção da cooperação (a economia da comunhão, o comércio justo ou o crowdfunding e o crowdsourcing são alguns exemplos). Para além dos mercados, uma democracia evoluída, com contrapoderes e possibilidade de participação directa, complementará esse processo de potenciação da cooperação como força da sociedade.

Uma sociedade mais cooperante não é uma sociedade alienada, ditatorial, nem livre de conflitos. Mas é diferente da estritamente competitiva. Muito do que fazemos pode ser mais colaborativo e menos competitivo (na família, na escola ou no trabalho). Quanto aos interesses incompatíveis e potenciais conflitos, espera-se que essa sociedade os minimize, ao mesmo tempo que promove a tolerância e a capacidade de compromisso entre ganhadores e perdedores.

Uma coisa é certa, uma sociedade onde tudo é calibrado para o despertar do lado mais competitivo do ser humano é uma sociedade tensa e insustentável: pela falência dos indivíduos face à pressão ou pelo desencadear sucessivo de conflitos. Os exemplos abundam: a transformação do desporto numa actividade profissional exclusivamente competitiva deu azo a que o doping, a corrupção e a perfídia se tornassem a regra, pois que a vitória (em vez do mérito) é o único valor; a abertura dos mercados financeiros a todo o tipo de especulação fez com que se instalasse um clima de competitividade cega entre os agentes que conduziu às crises, instabilidade e insustentabilidade que hoje vivemos; os climas escolares e profissionais excessivamente competitivos têm desvirtuado os valores da aprendizagem e do crescimento humano em nome do ficar em primeiro a todo o custo, com consequências para a saúde e bem-estar psicológico dos indivíduos (vejam-se as estatísticas das doenças mentais que não param de crescer ou mesmo a situação caricata dos EUA, o paradigma da sociedade competitiva, que corre o risco de começar a ver diminuir a esperança média de vida dos seus cidadãos).

Penso que vivemos em “overdose” competitiva e que é altura de inverter a tendência: há mais vida para além da competição e só uma sociedade mais cooperante será capaz de produzir um futuro mais feliz!

Economista, doutorado em economia da felicidade

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