O alemão que aprendeu a ser português

O sr. Alemão queria sentar-se à minha mesa, porque todas as outras cadeiras da esplanada estavam tomadas. E não percebia que, tendo-me sentado ali primeiro, eu era o dono da mesa, o guardião da cadeira, o mestre daquele esquálido domínio de alumínio

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Robert F Gabriel/ Flickr

Fiz um alemão compreender Portugal e bastou-me sentá-lo e usar a língua. Calma; não vou expor-vos ao meu arsenal de proezas sexuais, que pode ser definido por { }. Falo de conversa mesmo. À mesa. Mais propriamente, a uma mesa de café.

Estava sentado na esplanada do Galeto, em Lisboa, quando um senhor alemão se aproximou e, apontando para a cadeira vazia na minha mesa, perguntou:

“Can Ái têique dziz zit?”

“Quer levar a cadeira?”, perguntei. “Porque é que eu haveria de levar a cadeira?”, retorquiu o alemão, num tom agastado. “Eu sei que hoje é um VERRY VÉDE DÂI para Portugal, mas eu quero sentar-me aqui”, disse o sr. Alemão. Naquele dia leváramos cinco da Alemanha.

Não sou profeta mas antevi que se nos deparava um problema civilizacional e assim o disse ao sr. Alemão, pousando na mesa o meu livrinho.

“Vât árre iu zâiiing?”, vociferou Herr Flick. “Ai vant to zit hiâre”.

Era, de facto, um problema civilizacional. O sr. Alemão queria sentar-se à minha mesa, porque todas as outras cadeiras da esplanada estavam tomadas. E não percebia que, tendo-me sentado ali primeiro, eu era o dono da mesa, o guardião da cadeira, o mestre daquele esquálido domínio de alumínio. Não percebia que havendo uma cadeira livre, não pudesse sentar-se na mesa de um desconhecido. Convidei o sr. Alemão a sentar-se e expliquei-lhe que em Portugal quando nos sentamos numa cadeira numa esplanada, a respectiva mesa é nossa e só nossa. Em Inglaterra não é assim, mas aqui é; na Alemanha não é assim, mas aqui é.

“Mas isso não faz sentido: se partilharem as mesas mais gente se senta, há mais consumo e todos saem a ganhar”, disse o sr. Alemão.

Tudo certo, sr. Alemão, mas funcionar colectivamente, para nós, é uma ofensa aos escassos privilégios individuais que tanta manha nos custam a conquistar: Consegui uma mesa? Nunca mais a largo. Tenho um lugar no metro? Que se dane a velha em pé. Estou na fila do supermercado à frente de uma grávida carregada? Azarinho, amiga, carrega que só te faz bem.

O sr. Alemão não desarmava. No metro escandalizara-se com a forma como os portugueses que querem entrar numa carruagem se colocam à frente da porta. “Nem deixam sair os que estão dentro, nem conseguem entrar. É absurdo”. Experimentara o metro depois de desistir de lidar com o trânsito português: estando com prioridade numa rotunda e vendo outra fila parada, resolvera dar passagem ao carro da frente da fila desafortunada. “Pensei: passa um da minha fila, um da outra fila, o segundo da minha, o segunda da outra e por aí afora e é melhor para todos”.

Para azar do sr Alemão, o tipo atrás daquele a quem ofereceu passagem enfiou o focinho à força, o terceiro idem, e o sr. Alemão deu por si a torrar ao sol, com os carros atrás na sua fila a apitar, a apitar.

Em escassos dois dias o sr. Alemão acumulara indignações sobre o nosso modus operandi nas mais banais ocasiões do quotidiano capazes de nos terraplanar em qualquer rating de civilidade. Tentei fazer-lhe ver que derivado da nossa pobreza endémica temos um problema de desconfiança para com o outro; e outro problema com a propriedade.

“Vocês são irracionais”, sentenciou. Levantei-me, estendendo a mão ao homem. “Vai-se embora por estar chateado comigo?”, perguntou. “Não, não, ainda tenho de trabalhar hoje”, respondi, dando-lhe um tapinha no ombro, que ele estranhou. “Afinal, eu sentei-me à sua mesa, pela regra que me explicou deve estar ofendido”. “Meu amigo, eu sou latino: ao fim de cinco minutos de conversa um desconhecido torna-se quase meu irmão”.

A minha frase teve o condão de abananar o sr Alemão por uns segundos; depois emergiu da sua confusão, chamou-me de volta e perguntou:

“Agorra que se vai emborra sou o ownerr âve dziz tâibâle?”

“Sim, agora a mesa é toda sua, amigo”.

E por duas vezes repetiu “Áim dzi ownerr âve dziz tâibâle, Áim dzi ownerr âve dziz tâibâle”, soltando pequenas gargalhadas entre as frases, com aquela alegria infantil de quem se safa de uma travessura. Sem saber, tinha acabado de se tornar português.

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