Costureiras, ardinas e barbeiros na Lisboa de outros tempos
Que tal deixar que hoje sejam outros a escrever esta crónica? Têm a palavra os jornalistas que andavam à descoberta de Lisboa nos anos 1930.
Na casa onde estive de férias, havia uma colecção encadernada de jornais antigos — o Notícias Ilustrado do início dos anos 1930. Entre as muitas reportagens, surgem várias sobre personagens e profissões de Lisboa (e não só), desaparecidas ou quase. Uma das que logo me chamaram a atenção é sobre barbeiros.
“A navalha incomoda voscência?” é todo um tratado à volta dessa arte de fazer as barbas. O repórter refere vários barbeiros famosos na cidade — como Luiz de Menezes da Barbearia Fontes, “formado pela nobre cidade de Coimbra, onde escanhoou várias gerações de bacharéis”, e que “raras vezes faz a pergunta da praxe, porque tem um barbear tão doce e de tão boas maneiras que até lhe chamam Luís XV de Menezes”.
O texto, assinado por Xisto Júnior, é uma daquelas pérolas do jornalismo da época, em que, à falta de conteúdo que preencha todo o espaço, o autor entrega-se ao prazer de criar parágrafos como este, para introdução do tema: “No princípio, diz o Génesis, era o Verbo. Creio que esta tradição se tem perpetuado através de uma ‘gralha’ da Bíblia, porque o que primitivamente estava escrito era isto: ‘Ao princípio era a Barba.’”
Outra reportagem centra-se no drama da vida dos porteiros de Lisboa. Desta vez, o texto é assinado pelo jornalista e escritor Guedes de Amorim, que não poupa as frases poéticas para descrever o quadro de miséria que encontra: “Os porteiros de Lisboa, título feliz para uma novela feita de almas laceradas, pairando num fumo espesso de tragédia, vão aparecer ao longo deste artigo como procissão de sombras, como cortejo de fantasmas.”
Segue-se a descrição de como vivem estes homens e mulheres, em “cubículos debaixo do primeiro lanço de escadas, onde há um cheiro a bafio e medicamentos”, como acontece, por exemplo, num prédio da Rua do Crucifixo, “a rua dos advogados e da tristeza”. Há excepções, como em tudo, claro. Veja-se o porteiro do Maxim’s, “que tem um olhar céptico, talvez irónico, para as rainhas da luxúria e da noite, que vê sair e entrar dependuradas nos braços dos noctívagos.”
Outro tom, mais solar, é o do artigo sobre o concurso da Rainha das Costureiras. “As costureiras de Lisboa, pardais do Camões, figuras humildes das crónicas de Norberto de Araújo, pernas ágeis dos desenhos do Stuart a subirem o Chiado à tarde — migalhas honestas da cidade, um cestinho de lunch, olheiras roxas, palidez e jóias falsas… — vamos daí levar-lhes o sorriso duma tarde de festa, beijar-lhes as mãos trémulas e magras do trabalho de cada dia?”
O Notícias Ilustrado acompanha com entusiasmo o concurso, anunciando a vencedora, Judite Severino, que, logo após a vitória, aparece num anúncio ao Pó Petalia Tokalon — o que, temos de reconhecer, revela uma surpreendente rapidez de resposta da parte dos anunciantes da época.
Mas as crónicas mais divertidas chamam-se “Confessa-te!...” Nelas, o repórter, de chapelinho de palha branco com fita negra, lenço a sair do bolso, ar gingão, aborda na rua figuras da cidade. Podem ser, como nas páginas que tenho abertas, uma peixeira, uma florista ambulante e uma criada de servir. O tom de interrogatório bem-humorado faz lembrar A Grande Alface que hoje se pode ler na revista Time Out. Tal como estas personagens encontradas ao acaso nas ruas, nas suas respostas a perguntas aparentemente inocentes, revelam muito do que são as tribos urbanas de hoje, também aquelas nos falam dessa Lisboa dos anos 1930. É o caso da Maria dos Milagres, vestidinho branco, “uma rapariga que há seis anos é criada de servir nas Avenidas Novas, que já tem o seu cordão de oiro, com grandes medalhas, e uns escudos economizados, ao canto da mala”, mas que nega ter planos para casar.
E, para terminar, uma homenagem em duas páginas às personagens sem as quais estas histórias nunca chegariam aos leitores (não havia Internet, lembram-se?). A reportagem “Na república dos vendedores de jornais” mostra, em Lisboa mas também no Porto, esses miúdos morenos, de caras atrevidas, boina na cabeça e cigarro ao canto da boca, que respondem por alcunhas como o “Chancaria”, o “Charlot”, o “Camelo”, o “Papo” ou o “Pintassilgo”. Conhecemos aí o “Alfredo da Baixa repartindo papéis à porta do DN” e, na casa da venda de O Século, o chefe da venda, Júlio Soares, o “Bigode”. E ainda, em destaque recortado, o chefe da “malta da Praça da Liberdade”, no Porto, conhecido pela alcunha carinhosa de o “Carrasco”.
Desde sempre que os jornais escrevem sobre as cidades e os que nelas vivem. Hoje já não será tão fácil encontrar em Lisboa ardinas de boina e beata na boca, porteiros em cubículos infectos debaixo do vão de uma escada, criadas de servir de cordão de ouro ao pescoço, ou costureiras a disputar concursos de beleza. Talvez os barbeiros sejam os que melhor resistiram, embora já não se ouça pelos salões a pergunta: “A navalha incomoda voscência?”
Os tempos mudam e as personagens são outras. Cabe aos jornalistas de hoje encontrá-las e, com maior ou menor retórica, saber contar as suas histórias, numa cidade que ainda é tanto a mesma e é já completamente outra.