Portugal, cultura pop: do Ié-Ié dos Beatles ao do it yourself do punk

A Biografia do Ié-Ié, de Luís Pinheiro de Almeida, uma enciclopédia do rock português da década de 1960. A Instável Leveza do Rock, de Paula Guerra, obra académico dedicado ao rock alternativo nacional, dos anos 1980 a 2010. Dois tempos, o mesmo país. Reflexão e memória pop em construção

Fotogaleria
Os Electrónicos, uma das primeiras bandas portuguesas "tipo Shadows", na génese do Ié-Ié português DR
Fotogaleria
O Ié-Ié, através dos concertos, foi palco para manifestações de rebeldia no seio do Portugal do Estado Novo DR
Fotogaleria
A Beatlemania explodia mundo fora e chegava também a um Portugal fechado ao mundo DR
Fotogaleria
Os Sheiks, a mais célebre banda do Ié-Ié português DR
Fotogaleria
Os Dead Combo de Tó Trips são exemplo, em A Instável Leveza do Rock da peculiaridade da cena alternativa portuguesa Paulo Pimenta
Fotogaleria
Adolfo Luxúria Canibal diz que os Mão Morta só são rock alternativo porque "o mercado não dá para mais" Paulo Pimenta
Fotogaleria
Através dos seus programas de rádio, António Sérgio foi um dos grandes responsáveis pela nascimento de uma cultura alternativa em Portugal, na década de 1980 DR
Fotogaleria
Os Vicious Five, que regressaram esta para um concerto no próximo Optimus Alive, são vistos em A Instável Leveza do Rock como um dos nomes influentes no panorama alternativo da primeira década de século XXI Gonçalo Português

Primeiro momento: os Shadows a aparecer em cena, o tremolo das guitarras, as coreografias dos músicos e o ritmo bem “swingado” a entusiasmar quem os ouvia. Os Shadows a serem ultrapassados pelos Beatles, que cantavam e que tinham qualquer coisa especial, indefinível. Ou melhor, perfeitamente definida. Assim: “she loves you, yeah! yeah! yeah!” Como resistir? Chegava o Ié-Ié, multiplicavam-se os conjuntos e o Portugal de Salazar vivia a sua primeira grande manifestação pop.

Segundo momento: a revolução já acontecera, Portugal era um país democrático abrindo-se ao mundo. Punk, pós-punk, new-wave. Momentos de afirmação de uma cultura musical alternativa ao jogo das massas. Portugal manifesta-se: Pop dell’Arte, Mão Morta ou Mler Ife Dada mostram um outro universo sónico e uma outra forma de pôr o português em canção; António Sérgio, através da rádio, afirma-se como formador de uma geração.

Terceiro momento: na Biografia do Ié-Ié (Documenta), do jornalista Luís Pinheiro de Almeida, temos toda a história dessa fundadora manifestação pop, organizado em enciclopédia onde estão as histórias de todas as bandas Ié-Ié com obra editada, dos concursos em que actuavam, dos programas de rádio que os passavam. “O boom português surge ligado aos anos 1980, com o Rui Veloso e o Chico Fininho, mas para mim o grande boom do rock em Portugal dá-se em 1965, 1966, com o Concurso Ié-Ié [no Teatro Monumental, em Lisboa]”, diz Luís Pinheiro de Almeida.

Quarto momento: em A Instável Leveza do Rock (Edições Afrontamento), de Paula Guerra, professora auxiliar e Doutorada em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, delimita-se e é retratado o campo do rock alternativo português entre a sua génese, no início da década de 1980 e um presente marcado pela crise da indústria discográfica e pela nova realidade criada pelas transformações operadas pela net. Obra académica, extraída da tese doutoramento de Paula Guerra, resulta de um trabalho iniciado em 2004, durante o qual foram entrevistados músicos, editores, promotores ou jornalistas e analisada a imprensa e a bibliografia dedicada ao tema.

209 entrevistas, cinco mil inquéritos, onze histórias de vida (Adolfo Luxúria Canibal e João Peste são dois dos que as protagonizam) para compreender este este movimento das margens ou emanado das margens: dos Mão Morta aos Buraka Som Sistema, dos Tédio Boys aos Dead Combo, dos Mler Ife Dada aos Vicious Five. “Porque é que continuamos a ser alternativos?” Paula Guerra recorda a pergunta retórica do vocalista dos Mão Morta. “Porque o nosso mercado não dá para mais”, respondeu ele. “Muitos destes músicos não são profissionais. São amadores da música. Têm outros trabalhos”, diz a socióloga. “Isto não é o discurso do coitadinho”, acentua. “Resulta numa forma de fazer que é muito nossa”.

Portugal, anos 1960. Uma explosão de bandas formadas por adolescentes fascinados com o som criado por Hank Marvin, dos Shadows (organizava-se até um Concurso de Conjuntos Tipo Shadows), e com os novos soprados de Liverpool. A Biografia do Ié-Ié fixa esta história com um cuidado biográfico que não descura, através da reprodução de artigos de imprensa da época, fotografias ou citações na actualidade dos protagonistas do período, a imersão naquele ambiente.

O ano zero da cultura pop portuguesa. A procura de uma identidade na electrificação de fados ou do cancioneiro tradicional português (fizeram-nos os Titãs, os Tártaros ou o Conjunto Sousa Pinto) ou a afirmação do rock como foco de agitação juvenil (no palco Concurso Ié-Ié do Monumental, festival que, entre 1965 e 1966, acolheu 70 bandas vindas de todo o país e das antigas colónias, o Movimento Nacional Feminino colocara um cartaz onde se lia “A juventude pode ser alegre sem ser irreverente”, o que não impediu ruidosas manifestações de irreverência em algumas eliminatórias).

Foto
DR

Um sobressalto todo ele presente, sem futuro. Praticamente não havia indústria, não havia imprensa especializada, bons instrumentos eram inacessíveis à maioria da população e, além das Queimas das Fitas ou dos bailes de finalistas, rareavam os palcos. “Era, basicamente, o meio universitário”, resume Luís Pinheiro de Almeida. A comunidade Ié-Ié era de tal modo “vincada no movimento estudantil”, acrescenta, “que muitos são os grupos que se chamam ‘Universitários’ ou ‘Académicos’”: ao supracitado Conjunto Académico João Paulo podemos juntar o Conjunto Universitário Hi-Fi, de Coimbra, ou lisboeta Quinteto Académico.

“Só iam para os conjuntos Ié-Ié os filhos ‘bem’, quem tinha dinheiro para comprar os equipamentos, as baterias, as guitarras", afirma Luís Pinheiro de Almeida. As bandas eram, na maior parte dos casos, um divertimento de adolescência. Carlos Mendes, por exemplo, abandonaria os Sheiks, a mais famosa banda do período, depois de uma bem-sucedida estadia em Paris de que resultou um EP e a possibilidade de um contrato para uma temporada de concertos. Razão: entre a banda e o curso de Arquitectura, escolheu a licenciatura. E, caso não fosse a conclusão dos estudos universitários a ditar o fim das bandas, este chegaria por outra via, mais violenta, decididamente não desejada.

Portugal, anos 1960, país em guerra. O Estado Novo não hostilizou abertamente a efervescência juvenil criada pela geração do Ié-Ié. Pelo contrário. “Teve uma estratégia que foi do meu ponto de vista bem-sucedida”, diz Luís Pinheiro de Almeida. “O Estado Novo alicia os jovens para os conjuntos, arranja aquele concurso [Ié-Ié do Monumental, organizado pelo Movimento Nacional Feminino], desvia aqueles miúdos da contestação estudantil e da contestação ao Regime e à Guerra Colonial e, quando chegava a idade militar mandava-os para a tropa. É por isso que, além do Conjunto Académico João Paulo ou dos Sheiks, não se vêem grandes carreiras no Ié-Ié”.

Apesar das exiguidades do meio e da falta de condições, com bandas como os Electrónicos a percorrerem os cinemas do país para actuarem no intervalo de Mocidade em Férias, filme onde se via Cliff Richard e os Shadows (curiosa forma de fazer digressões), a verdade é que o Ié-Ié deixou obra. Obra gravada e sementes para o futuro. Exemplo paradigmático. Seria do Conjunto Mistério, vencedor do Concurso de Conjuntos Tipo Shadows, em 1963, que nasceria o Quarteto 1111, a mais criativamente arrojada banda portuguesa da década de 1960. O Ié-Ié só tinha presente, a obra de Luís Pinheiro de Almeida assegura que não o esqueceremos no futuro.

Foto
DR

Regresso ao passado
Avançamos duas décadas. Portugal pós 25 de Abril. O germinar de uma cultura punk, independente da grande indústria, criativamente ousada, alimentando-se numa rede onde o “do it yourself” se estende da criação musical à invenção de editoras, como a Ama Romanta, ao esboço de um circuito de concertos, com salas como o Rock Rendez Vous, ao surgimento mais consequente de imprensa especializada (lembramos o Blitz). Paula Guerra estava lá. Foi isso que a conduziu a este A Instável Leveza do Rock agora editado. “Foi uma espécie de regresso ao passado e uma busca da mim própria. A música era uma fonte de procura de outras coisas, de livros, de cinema”.

Apoiada em Pierre Bordieu ou nos Cultural Studies anglo-saxónicos, partiu em busca do rock alternativo em Portugal, realidade instável e em constante mutação – os Buraka Som Sistema, por exemplo, não são rock, mas inserem-se nesta narrativa. Sem financiamento, suportou com o seu salário o trabalho de dez anos elaborado por si e por uma equipa de colaboradores.

Trinta anos vistos à lupa. “Consegui objectivar algo que as pessoas já sabiam informalmente”, diz. Como a necessidade, tanto prática quanto ideológica, do do it yourself. Isto desde a década de 1980 (“manifestava-se em coisas tão simples quanto a roupa, que não era fácil de encontrar, o que resultou em imensa criatividade na criação de moda e adereços”) até à actualidade (“não posso deixar de referir pessoas como o Hélio Morais ou o Quim Albergaria [músicos de Vicious Five, If Lucy Fell, PAUS ou Linda Martini], miúdos que vieram das periferias de Lisboa e que se assumiram muito activos na cidade, fazendo a música, as capas dos discos, a divulgação”).

À primeira vista, tudo mudou entre a década de 1960 do Ié-Ié e a actualidade. Nem tudo, porém. Tal como antes, os actores no meio são maioritariamente homens, “oriundos fundamentalmente de Lisboa e do Porto e com altas qualificações escolares, o que é relevante considerando o país em que estamos”, aponta Paula Guerra. “Esse é um factor distintivo importante. Há uma reprodução da condição social na cultura, no simbólico. E isso, apesar de mais diluído com a passagem do tempo, nota-se em toda a área cultural [portuguesa], não só na música”.

Paula Guerra destaca como factores peculiares do rock alternativo em Portugal, “a questão da língua” (“os anos 1980 marcaram uma forma de escrever em português, com questões específicas portuguesas contidas nas letras”) ou a “vivacidade muito interessante” que, ao longo dos anos, “apesar de sermos um país tão pequeno e pautado por tantas dificuldades económicas”, se foi vivendo em cidades como “Coimbra, Leiria, Alcobaça ou Barcelos”.

No caso da Biografia do Ié-Ié, temos a história fechada. Neste caso, o trabalho é continuado. A Instável Leveza do Rock foi o primeiro passo. A Academia a acordar, por fim, para a cultura pop? Paula Guerra questiona no início do livro o que terá conduzido ao “carácter incipiente da cultura pop em Portugal”. Responde: “A indústria musical é muito recente e a cultura pop não entrou ainda no imaginário colectivo como sendo relevante. Ainda está a formar-se. A Sociologia e a Academia reflectem o que se passa na sociedade. Fruto do nosso passado histórico, do país fechado da ditadura, as pessoas que hoje têm uma determinada idade são muito pouco sensíveis à cultura pop. Não foram ensinadas a dar-lhe valor. Ainda hoje o rock, ainda mais o punk, são tidos como manifestações relativamente ilegítimas das culturas urbanas e juvenis. Mas isso está a mudar”.

Está? Temos estas duas obras, que se juntam a outras recentes, como Portugal Eléctrico – Contracultura Rock 1955-1982, de Edgar Raposo e Luís Futre, ou Tudo Isto é Pop, do investigador brasileiro Tiago Monteiro. Teremos, de 8 a 11 de Julho, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e na Casa da Música, a conferência “Keep It Simple, Make It Fast –Underground Music Scenes and DIY Cultures”, que contará com a presença de 150 investigadores de 30 países.

No próximo ano, serão publicadas em livro as histórias de vida realizadas no âmbito de A Instável Leveza do Rock. E dois livros relacionados com o projecto Keep It Simple, Make it Fast, iniciado por Paula Guerra e dedicado à história do punk em Portugal. Enquanto isso, Luís Pinheiro de Almeida, entre projectos de reedição da obra do Conjunto Mistério, confessa que quer dedicar-se a nova Biografia. “Gostava de fazer o mesmo para os anos 1970, 1980 e 1990”.

Sim, parece estar a mudar. Reflexão e memória pop em construção.

Sugerir correcção
Comentar