Novo livro de Herberto Helder surpreende, deslumbra e irrita

Foto
DR

Apenas um ano após Servidões, Herberto Helder regressa com A Morte Sem Mestre. Alguns gostam muito, outros acham que é um livro falhado.

O mais recente livro de Herberto Helder, A Morte Sem Mestre, lançado esta segunda-feira com a chancela da Porto Editora — numa edição que inclui um CD com cinco poemas ditos pelo autor —, está a dividir opiniões, mesmo entre leitores que tinham apreciado sem reservas o anterior Servidões (2013). Num poeta que parecia ter-se tornado, sobretudo desde a publicação de A Faca Não Corta o Fogo, em 2008, um caso de consenso crítico quase absoluto, este acolhimento díspar é desde logo surpreendente. 

Mas A Morte Sem Mestre é um objecto suficientemente estranho para provocar reacções desencontradas. Há um efeito de exposição da circunstância biográfica ainda mais radical do que em Servidões, passagens cuja força parece residir num exasperado e despido confessionalismo – “e eu que me esqueci de cultivar: família, inocência, delicadeza,/ vou morrer como um cão deitado à fossa!” –, mas também alguns desses poemas que, logo à primeira leitura, e antes de quaisquer digestões mais reflectidas, sabemos imediatamente que são geniais. Pela energia e pelo ritmo, pelo poder imaginativo, pela invenção verbal, mas também por um efeito de estranheza que é paradoxalmente acompanhado pela intuição de que batem certo com a mais funda verdade da obra. Poemas que não se pode imaginar mais ninguém a escrever, mas para os quais nunca estamos preparados, mesmo que tenhamos lido toda a poesia do autor. 

O Ípsilon pediu a alguns poetas e ensaístas que lessem A Morte Sem Mestre e nos confiassem as suas primeiras impressões. Entre aqueles a quem o texto mais imediatamente fascinou conta-se o poeta Gastão Cruz, que fala de “extraordinário fulgor” e de “uma dinâmica que absorve, e absolve, quaisquer eventuais asperezas”. O ensaísta Carlos Mendes de Sousa acha “muito forte” a “fúria” com que o poeta “incorpora na sua poesia a questão da idade”, e também ele sublinha a “consistência e unidade” do livro, achando que o seu andamento global redime aquilo que, numa primeira leitura, lhe tinham parecido instantes de “um certo afrouxamento”. 

A ensaísta Rosa Maria Martelo vê aqui novamente confirmado “o génio criador indiscutível” do poeta, mas distancia-se dos que valorizam sobretudo o efeito de conjunto. “Embora os diálogos internos aproximem alguns dos poemas, e apesar de serem retomados temas dos últimos dois livros, os poemas parecem ganhar, cada um por si, mais autonomia do que era habitual nos livros de Herberto Helder”, defende.

Já o poeta Manuel de Freitas, mesmo ressalvando que “seria injusto afirmar-se que A Morte Sem Mestre é um mau livro”, vê nele “uma espécie de mero post-scriptum apressado e pouco convincente” de Servidões. E opinião não muito diversa tem o ensaísta Osvaldo Silvestre: trata-se, diz, de um livro “mais curto e menos estruturado do que os dois anteriores”, e “habitado pela urgência de se dar a público num estado que poderia ser o de um caderno de esboços”, ou do “esboço de um livro por vir”. 

Uma controvérsia que, note-se, abrange apenas o texto de Herberto Helder, já que a edição do livro e a estratégia de marketing da Porto Editora, essa, a julgar pelas pessoas que ouvimos e pelos comentários que vão surgindo nas redes sociais, parece estar a conseguir irritar bastante consensualmente os leitores portugueses de poesia. 

A Morte sem Mestre, diz Osvaldo Silvestre, “parece pensado para piorar de vez o caso Herberto Helder”, no sentido em que “uma vida que é uma ética” se confundiria agora, na prática, com a lógica daquilo mesmo que sempre se propôs combater. E enumera: “a reincidência na ambígua política da tiragem única, que é uma boa estratégia de produção de raridades, a passagem à editora industrial, o silêncio da recusa acompanhado do bónus da Voz”. Uma alusão ao CD que acompanha o livro, e que Silvestre considera “muito dispensável, ao contrário das gravações antigas do poeta”.

Se uns passavam bem sem o CD, e outros defendem que as gravações deviam ter sido editadas, Carlos Mendes de Sousa é uma excepção: gostou mesmo destas leituras, que ouviu na TSF. “Foi uma surpresa muito boa”, diz, sublinhando que aprecia o sotaque madeirense e “aquela maneira de Herberto Helder dizer os poemas, com aquele grão e com um ritmo que é só dele”. 

Engrenagem manhosa

Rosa Maria Martelo, tal como acha que este é um livro “desabrido” e “extremo”, do qual “não é fácil falar de imediato”, também tem dificuldade em “entender muito do que foi acontecendo” nos dias que antecederam o lançamento. Refere-se às “precárias gravações da voz do poeta divulgadas na TSF”, à “publicação simultânea de uma edição deServidões num ebook incaracterístico”, e ainda ao “marketing tanto mais agressivo quanto aparentemente desnecessário”. E já depois de ter visto o livro impresso, constatou que o suposto papel craft que reproduziria o modo como Herberto Helder encaderna os seus livros é, afinal, “um papel de luxo a imitar, num gesto kitsch, um papel de embrulho”.

Várias outras objecções se poderiam levantar a esta edição. A ideia de reproduzir na sobrecapa a caligrafia do autor lembra um pouco de mais as novas capas que a Porto Editora concebeu para os livros de José Saramago. A opção de acondicionar o disco no início do volume torna o livro mais difícil de folhear, e talvez se tivesse podido dispensar a indicação “inclui CD de oferta”. Finalmente, por muito que se possa questionar a sobrecapa, só podemos rezar para que os leitores a conservem e que, daqui a algum tempo, o livro não comece a aparecer sem ela nos alfarrabistas, porque a capa dura interior, com o nome do autor e o título inscritos num círculo a imitar um CD, é bastante pior. 

Desconcertante é também o anunciado lançamento de Servidões em ebook. Herberto Helder, como se sabe, nunca quis ver os seus livros reeditados, preferindo actualizar os volumes da poesia completa, opção discutível, mas à qual não será alheio o facto de ter sido sempre reescritor compulsivo. Digamos, pois, que não parece muito crível que esta reedição virtual – limitada no tempo, como uma promoção de supermercado –, tenha saído da sua cabeça. 

Manuel de Freitas censura toda a “estratégia comercial e promocional” em torno do livro. “É como se Herberto Helder se tivesse tornado, graças à aura que o passou a envolver, uma sinédoque deletéria, o nome único em que se passou a aglutinar, para o vulgo, a ideia e a prática de poesia”. E cita autores de “idêntica grandeza”, como António Barahona, António Franco Alexandre, Armando Silva Carvalho, Carlos Poças Falcão ou João Miguel Fernandes Jorge, que “nunca terão livros em pré-venda” e para os quais imagina que este “espectáculo” seja “um bocadinho deprimente”. Salvaguardando que “o autor pode até não ter culpa”, defende que estamos perante “uma engrenagem manhosa, inimiga a todos os títulos daquilo que nos habituámos a entender e a respeitar como poesia”.

Numa metáfora cinéfila, digamos que entre os dois protagonistas – o poeta e a editora – parece faltar uma certa química. Uma frase de Fénelon que a Porto Editora ostenta, como se fora um lema, na parede de um espaço de recepção do seu edifício, e que chamou a atenção de Rosa Martelo – “A leitura deve ser para o espírito, como o alimento para o corpo, moderada, saudável, e digerível” – simboliza bem a previsível disfuncionalidade deste enlace. É que se a leitura “também pode ser isto”, como Martelo reconhece, é difícil pensar-se num poeta mais imoderado e indigesto do que Herberto Helder.

Mas se o próprio trajecto do autor ajuda a justificar as reacções emotivas que esta mudança de chancela está a provocar – a ponto de a sua saída da Assírio & Alvim estar a ser vista como uma espécie de apostasia –, também seria sensato não se perder de vista que, no fim de contas, um poeta são os seus poemas, esses é que são os seus “veros filhos”, como o autor lhes chama num dos mais extraordinários poemas deste livro. 

E convenhamos que é mais plausível imaginar este Herberto furioso com o envelhecimento, esse “cabrão do velho no deserto, último piso esquerdo”, cujos poemas falam agora de retretes e abjecções afins, a borrifar-se para a decepção que possa estar a infligir aos seus fiéis – até pela consciência de que o controle sobre a obra acabaria sempre por lhe escapar irremediavelmente das mãos –, do que presumi-lo uma delicada alma inocente a deixar-se transviar pelos demónios do mercado”. 

O caminho da “impuração”

O próprio livro, alternando uma rudeza de fractura exposta com passagens de uma invenção desenfreada, não foi certamente pensado para ser um objecto agradável, e não surpreende que provoque perplexidades e desconfortos. 

Para Manuel de Freitas, “depois da violenta inflexão ocorrida em Servidões”, este livro parece tentar “manter o tom”, mas “os resultados revelam-se por vezes frouxos ou previsíveis”. Freitas acha também que alguns destes versos “soam mal” e se “engasgam na forma e no sentido, como se não tivessem levedado tempo suficiente”. E cita passagens como “que faz um leão senão /que se transforma numa estrela”, ou “a espuma a espumar no ar”, ou o “estrela/estela” que fecha um poema.

Osvaldo Silvestre não nega que A Morte Sem Mestre tem bons poemas, “que retomam o melhor dos dois livros anteriores”, e que “ajudam a relançar a eterna questão do lugar do poema” no “macro-livro ou poema contínuo” de Herberto Helder. Mas é nessa perspectiva que considera que é “um livro derrotado pelos seus melhores poemas”. 

Gastão Cruz, que tinha 20 anos em 1961, quando saíram A Colher na Boca e Poemacto – e quando ele próprio se estreou com A Morte Percutiva – recorda que pertence “a um tempo que viu deslumbradamente surgir a poesia de Herberto Helder”. E é por isso com alguma naturalidade que admite que a evolução estilística que marca a fase mais recente do poeta, iniciada com A Faca não Corta o Fogo, lhe suscitou algumas interrogações”. É duplamente insuspeito, portanto, quando diz que, apesar de “algumas passagens que o desequilibram”, A Morte sem Mestre, que considera “um único poema”, lhe causou “uma impressão tão intensa” que o persuadiu de que é “desse desequilíbrio, desse excesso, porventura dessa imperfeição”, que a obra “retira uma parte do seu extraordinário fulgor”. 

Talvez Rosa Martelo não se afaste muito do que diz Gastão Cruz quando lembra que Herberto Helder “sempre viu no erro a possibilidade de um surpreendente acerto: o acerto de uma ‘impuração’”, neologismo que descreve bem o movimento deste livro, que abre significativamente com um “apelo ao ‘bom leitor impuro’”. E deixemos a última palavra a Gastão Cruz: “A morte poderá não ter mestre, mas a poesia tem-nos, e Herberto Helder está, indubitavelmente, entre os seus maiores”. 

Sugerir correcção
Comentar