Em Turim, o Benfica deixa o futebol no banco de suplentes

A longínqua tragédia de Superga reforçou a união entre dois clubes que nunca deixaram de se respeitar. A capital do Piemonte não é apenas o palco da 10.ª final europeia dos “encarnados”, é uma cidade que mantém vivo o Grande Torino. Na quarta-feira, o Benfica vai ter apoio suplementar.

Foto
Os adeptos do Torino agradecem a memória do Benfica DR

O aeroporto, a Piazza Castello, o Juventus Stadium. No itinerário de muitos dos adeptos portugueses que por estes dias enchem as ruas de Turim, há um quarto ponto de paragem obrigatória: o memorial erguido nas traseiras da Basílica de Superga, uma espécie de cordão umbilical que desde Maio de 1949 liga afectivamente o Benfica e o Torino. First things first. A memória, a história e o respeito acima de tudo. A competição logo a seguir.

Para o Benfica, Turim nunca será apenas o palco da final da Liga Europa 2013-14 ou a cidade onde disputou a meia-final da Taça dos Campeões Europeus (Maio de 68) e os quartos-de-final da Taça UEFA (Março de 1993). A capital da região do Piemonte tem uma dimensão simbólica, sentimental que nem o tempo parece esbater. Os anos passam, as recordações não.

É difícil esquecer aquele 4 de Maio de 1949 e a forma cruel como entrou para os livros da história do futebol. Puxamos o filme atrás rapidamente: no regresso a casa após um jogo de homenagem ao capitão do Benfica Francisco Ferreira, em Lisboa, o avião em que seguia a equipa do Torino despenhou-se à chegada a Turim, devido ao denso nevoeiro. Não houve sobreviventes. Desaparecia uma geração brilhante do futebol italiano, nascia um mito.

“Para os jogadores foi uma coisa que ficou gravada na memória. Foi uma tristeza absoluta, uma tristeza daquelas grandes como se morresse um pai, uma mãe ou um filho”. É assim que Rogério Pipi, autor de um dos golos nessa partida de 3 de Maio disputada no Jamor, recorda o acidente que vitimou a melhor equipa italiana da altura, no documentário Benfica Torino 4:3.

Sem o saber, o habilidoso internacional português tinha-se despedido, nessa noite (os jogadores de ambas as equipas foram jantar juntos depois do encontro), de nomes que Itália não esquece e que Turim gravou para a eternidade na zona de Gugliasco e nas traseiras da Basílica de Superga, local da colisão. Bacigalupo, Aldo e Dino Ballarin, Grezar, Loik, Maroso, Ossola, Rigamonti, Menti e o ícone Valentino Mazzola foram alguns dos 18 jogadores (entre as 31 vítimas) que deixaram atrás de si um rasto de talento e saudade.

O destino aproximava ainda mais dois clubes históricos. E o recente frente-a-frente entre Benfica e Juventus, nas meias-finais da Liga Europa, serviu apenas para fortalecer essa ligação. Porque no jogo da primeira mão, os adeptos “encarnados” exibiram nas bancadas do Estádio da Luz uma faixa de homenagem – “4 de Maio de 1949: Lisboa não esquece. Honra ao Grande Torino”. Porque a comitiva “encarnada”, tal como já antes acontecera com a geração de 1960, quando Mário Coluna depositou em Superga uma coroa de flores em nome do plantel, prestou homenagem às vítimas, com uma visita ao memorial, na partida da segunda mão.

“Não foi fácil estar aqui, mas era um dever do Benfica homenagear o exemplo do Grande Torino. Este acidente também nos ajudou a crescer”, resumiu, durante a cerimónia, Alcino António, vice-presidente do clube. Os adeptos do Torino retribuíram este gesto com aplausos, tal como tinham retribuído antes a acção da claque portuguesa com um “Obrigado, benfiquistas”, plasmado a letras garrafais, num jogo da Serie A com a Udinese, no Estádio Olímpico.

Esta relação fraternal entre os dois clubes ganhou contornos ainda mais sólidos quando os responsáveis do Torino decidiram dividir em três partes idênticas uma peça da fuselagem do avião acidentado e oferecer uma delas ao Museu Cosme Damião, em Lisboa. “Para os adeptos do Torino, o Benfica é a equipa que marcou o destino e que, de um certo modo, fez entrar o Torino na galeria das lendas”, explica ao PÚBLICO Domenico Beccaria, presidente do Museo del Grande Torino e della Leggenda Granata.

“A centelha que deu vida à lenda”
É justamente lá, em pleno museu, cujas portas abriram expressa e excepcionalmente a uma segunda-feira para a visita do PÚBLICO, que o Grande Torino ainda respira. A equipa imbatível de meados da década de 1940, que chegou a fornecer 10 jogadores para o “onze” da selecção italiana, ocupa uma casa de contornos senhoriais nas franjas da cidade, a villa Claretta Assandri.

“A tragédia de Superga foi a centelha que deu vida à lenda. O Torino, como qualquer outra grande equipa do mundo, haveria de viver o seu natural declínio e assim acabou por permanecer na memória colectiva”, acrescenta Beccaria. “Era a equipa mais famosa de toda a Europa e atraía muita gente”, recorda Artur Santos, que cumpriu toda a década de 1950 de águia ao peito e visitou Turim no início do mês para uma homenagem ao clube italiano.

Com o defesa “encarnado” seguia também na comitiva José Bastos, outra glória do clube e testemunha da simbiose entre os dois emblemas. “Na nossa ida a Turim, a caminho da igreja, ouvimos 25 mil pessoas a gritar pelo Benfica, que era uma coisa que eu não imaginava”, confessou recentemente à Benfica TV.

O número está longe, muito longe dos cerca de 600 mil italianos (bem mais do que a população da cidade na altura) que invadiram as ruas de Turim para as cerimónias fúnebres em Maio de 1949. As fotos que vestem as paredes do museu são esclarecedoras. As peças que restaram do acidente também: a mala, quase intacta, de Valentino Mazzola, algumas gravatas e luvas. E depois o pneu da aeronave e a hélice deformada do Fiat G.212.

No primeiro andar, para além do banco onde originalmente se equipavam os jogadores no antigo Stadio Filadelfia (que em 2015 deverá assistir ao início das obras de reconstrução, com o intuito de passar a receber os treinos da equipa do Torino e os jogos das camadas jovens) há uma simples prateleira com três camisolas expostas. À esquerda, a do Inter Milão, clube com o qual o Grande Torino disputou o último jogo oficial; à direita a do River Plate, equipa que viajou para a Europa para uma partida de solidariedade para com as famílias dos jogadores. Ao meio, claro está, a do Benfica.

“Foi uma honra para ambos” aquele jogo no Estádio do Jamor, anota Beccaria, que não tem dúvida alguma quando lhe perguntamos se o campeão português contará amanhã com o apoio dos tifosi do Torino: “Creio que a totalidade dos adeptos do Torino estará do lado do Benfica. Um pouco pela amizade histórica, um pouco porque eliminou o rival da cidade”.

Sugerir correcção
Comentar