Limite ao défice: fundamental ou inútil?

Temos de ter em conta o absurdo que é introduzir uma norma imposta por organismos exteriores na nossa Constituição. Não deveria a Constituição ser a manifestação da vontade popular?

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David Moir/Reuters

Somos obrigados, pelo Tratado Orçamental, a introduzir um limite ao défice na Constituição, para evitar que voltemos a ser “maus alunos no futuro”. Será que faz sentido ou é desejável?

Temos de ter em conta o absurdo que é introduzir na nossa Constituição uma norma imposta por organismos exteriores. Não deveria a Constituição ser a manifestação da vontade popular? Parece-me que introduzir tal norma seria perigoso para a legitimidade do próprio texto constitucional. A Constituição pode deixar de ser vista como um sistema de garantias face ao poder, para passar a ser um sistema de legitimação de medidas que nos são impostas.

Como pode, na prática, esta regra funcionar? Caberia ao Tribunal Constitucional a fiscalização do cumprimento do limite do défice? Ao Tribunal de Contas? Tudo isto levanta enormes problemas. O Tribunal Constitucional apenas tem poder de fiscalização da constitucionalidade de normas em concreto, não se podendo sequer declarar uma lei inconstitucional na sua globalidade. Então que artigo seria inconstitucional num caso de incumprimento? A quem caberia decidir onde cortar?

Se for atribuído este trabalho ao Tribunal Constitucional estaria em causa o princípio da separação dos poderes. Passaria a caber ao poder judicial a definição das políticas e a forma como são aplicadas. A acção do Governo passaria a estar subjugada a interesses de um órgão que não é eleito pelos cidadãos.

Qual a possível solução para o problema? A criação de um órgão específico que tratasse da questão do limite do défice poderia ser uma alternativa; contudo, se o órgão de fiscalização constitucional não consegue exercer competências nesta matéria, isto é prova mais que suficiente de que a matéria não deve ser colocada no patamar constitucional.

A Constituição é um documento que, pela sua natureza, pretende fixar apenas os princípios gerais da condução do Estado e os principais valores a serem prosseguidos. A constituição já inclui princípios gerais de boa administração financeira do Estado e dos fundos públicos. De que serviu isso até hoje? Houve algum impedimento à situação que hoje vivemos? Da mesma maneira, para nada serviria uma simples adição de um artigo que limitasse o défice na Constituição.

Sem meios de assegurar o seu cumprimento, a sua existência seria um mero enfeite a juntar-se a tantos outros que povoam a nossa Constituição. Tendo isto em consideração, é perceptível que uma revisão constitucional nesta matéria não implicaria a adição de apenas um artigo à lei fundamental, implicaria uma revisão de fundo de vários órgãos de soberania, para poder existir um qualquer mecanismo de fiscalização de uma matéria que, a meu ver, não é sequer uma questão jurídica.

Pode ainda assim ter-se uma visão minimalista da revisão constitucional? Talvez, mas apenas se a regra de ouro fosse criada como cláusula de autodestruição em que o Estado fecharia portas e declarasse insolvência. Situação que não é, de todo, desejável.

Desta forma, a regra de ouro faz jus ao seu nome. Da mesma forma que as peças de ouro que temos em casa não servem para nada, também esta regra não tem nenhuma utilidade, servindo, única e exclusivamente, para “bibelot”.

O texto não vincula o NOVA Debate, expressando exclusivamente a opinião do autor.

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