Um romance é que era!

Um exercício ambíguo: ainda vale a pena apurar o estado da poesia?

A numerologia é tramada: este número 33 da revista Relâmpago faz pensar na vida de Cristo. Não que seja caso para crucificar o Conselho Editorial e, em particular, Carlos Mendes de Sousa, que assume desta vez a função de director. É antes o dossier O estado da poesia que parece a cruz às costas da revista que mais tem tentado conservar um lugar destacado para a poesia nacional.

Com efeito, a vocação para o balanço e para o inquérito, que vem de longe (vejam-se os números 6, 10 ou 12), tem agora um resultado algo contraproducente, pois boa parte das respostas impugna frontalmente o discurso das quatro perguntas colocadas. Fernando Guerreiro, por exemplo, duvida de que haja algum “valor” especial da poesia no século XX, sobretudo se invocado como “século d’oiro”; rejeita a necessidade de a poesia se preocupar com o estado da crítica (que, acrescenta, “também pode ser uma forma de poesia”); desconfia da ideia de haver “um número elevado de leitores de poesia” e de muitos outros “mitos postos a correr pelos contemporâneos”; e, por fim, opõe-se à tese (enunciada na quarta pergunta) de que a poesia seja “fundamentalmente retrospectiva”, defendendo antes que “toda a poesia é sempre do presente”, o que, bem lido, significa a nenhuma relevância da inquirição sobre o “estado” da poesia.

Outros exemplos. Joana Matos Frias escusa-se à quarta resposta pondo em causa as vantagens de uma atitude historicista em matéria poética. E cita na íntegra um poema de Ruy Belo cujos últimos três versos ameaçam minar a tentativa de olhar para o futuro da poesia com os óculos do cânone poético do século XX: “Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz/ mas isso era o passado e podia ser duro/ edificar sobre ele o Portugal futuro”. Logo a seguir, o poeta João Luís Barreto Guimarães declara a abrir que a tal primeira pergunta (que consagra, aliás equivocamente, o dito cânone) lhe parece “colocada de uma forma algo tendenciosa”. Jorge Sousa Braga refuta a validade da oposição entre “a invenção verbal”, de um lado, e “uma mais estrita referencialidade”, do outro, que é o modo ultra-esquemático como essa primeira pergunta concebe a relação entre a tradição moderna e as poéticas das décadas mais recentes. Manuel de Freitas — suposto representante do segundo lado — contesta igualmente os termos do argumento e propõe a poesia como permanente ponte entre invenção verbal e desejo de real, oferecendo Cesário Verde como exemplo bastante. E Luís Quintais (um dos quatro editores da Relâmpago) concorda que “este debate começa a tornar-se uma enorme maçada”…

Haver um certo privilégio da voz dos poetas nos solicitados a pronunciarem-se não fica nada mal a quem organizou o volume. Mas é daí, justamente, que vêm os exemplos de resposta mais dura ou indiferente, além dos casos que acabo de citar. Miguel-Manso é claríssimo: “Pelo estado da poesia não me interesso.” E para que não fiquem ambiguidades quanto ao mais: “Sobre leitores de poesia não preciso de esclarecimento. A propósito de edição, recepção, pressupostos, tendências, recensões, assembleias, bandos de bardos, suas simpatias, aversões: bocejo.” Uma resposta deste teor deverá dar muito que pensar a quem quis ouvi-lo, certamente por se tratar do autor de alguns dos livros de poesia mais destacados nos últimos anos. É que Miguel-Manso escolheu responder ao que lhe perguntaram, assumindo que se interroga “sobre a empreitada” a ponto de fazer esta pergunta radical: “Porquê dar tanta importância a algo que — o mais das vezes — não está?”

Se a poesia não está, também não há estado da poesia que valha a pena fazer ou apurar. Um poeta que fala assim em nome de “uma poesia sem estado” dá que pensar quanto à viabilidade deste género de narrativas que, entre nós, foi fundado pelos ensaios que Pessoa publicou em 1912 sobre a “nova poesia portuguesa”. E que parece chegado a um inegável ponto de exaustão. Ora, o que suportava o discurso crítico pessoano e continua a suportar o essencial das suas continuações é o quadro nacional em que a poesia é narrada para se converter em história da poesia. Na estrutura do nº 33 da Relâmpago isto vê-se muito bem: na secção de Poesia e na secção de Crítica colaboram pessoas que não são portuguesas, ao passo que no dossier sobre o estado da poesia nenhum estrangeiro participa. É só o estado da poesia portuguesa que interessa e são só portugueses os que sobre ele se pronunciam.

Digamos, a correr, que é como se dos pressupostos da Relâmpago se excluísse a evidência maior das últimas décadas: que a poesia vive agora na era da Internet. Não se trata de erigir a tecnologia em causa omniexplicativa, mas de sublinhar certa dissolução acelerada de fronteiras que intensifica, na raiz (na experiência individual de cada poeta), a Babel cosmopolita e dispersa a que os poemas vão buscar a sua peculiar inspiração. Nesse sentido, notar que muita poesia portuguesa que se escreve hoje deve pouco à poesia portuguesa que se escreveu ontem é tão-só reconhecer que a de ontem foi “portuguesa” como à de hoje já não é prático continuar a ser.

Por muito bom que fosse, o cânone poético moderno não serve de nada para imaginar a poesia que está para vir. Não é, como diz aqui Fernando Pinto do Amaral com o seu inigualável talento para o óbvio, que seja ainda cedo “para avaliar o que virá a ser o [século] XXI”. Antes se torna evidente que não há modo de regressar a 1834, ao tempo em que Alexandre Herculano respondia num ensaio às perguntas “Qual é o estado da nossa literatura? Qual o trilho que ela hoje deve seguir?”. Transferidas para a poesia, que significado daríamos agora nessas perguntas ao possessivo “nossa”? Pessoa ainda poderia usá-lo em 1912 e anunciar um “supra-Portugal” paralelo ao “supra-Camões” em que apostava — hoje, para nós, nada mais irremediavelmente datado (e romântico) do que esse paralelo.

Não é por acaso que Miguel-Manso fecha o seu depoimento pronunciando-se sobre a poesia portuguesa com uma piada de Groucho Marx. Escreve, em inglês, que não lhe interessa pertencer a um clube que aceita para membros pessoas como ele. Mas o gesto mais radical, o gesto genial incluído neste dossier sobre o estado da poesia pertence a Rui Cóias: em quase 15 páginas compactas, participa no inquérito com um ensaio cujo título é nada menos do que isto: A luz que clareia os campos — instruções de um raciocínio para a origem e estrutura das imagens e do conhecimento! Abrindo com uma epígrafe de Heidegger, não faz a menor alusão às quatro perguntas do inquérito e ao seu objecto explícito, como se mais ou menos dissesse que não há melhor resposta aos vossos alhos do que estes meus muito mais interessantes bugalhos.

Cóias mostra, afinal, que o pensamento da poesia passa noutro lugar que não o da ideia de estado que no limite é sempre aparelhada pelo Estado. Porque se fosse o caso de, neste inquérito, “estado” querer só significar “condição” (e não é mesmo o caso), então a melhor descrição da condição actual da poesia viria fora do dossier, no poema Indirecto Livre, de Rosa Oliveira (p. 142-43). Pois suponho que já todos os poetas, dum modo ou doutro, passaram pela mesma cena um pouco vexatória de alguém lhes dizer: “um romance é que era!...” Se não passaram, vão passar e, já agora, para que não se diga que é inútil citar, fica a cena inteira inicial para que reconheçam bem os sinais daquilo que os espera: “um romance é que era!.../ dizem-me olhando de lado/ os poemas/ longos/ magros/ enguias pensantes/ agarradas ao papel/ do centro de reabilitação”. 
 

Sugerir correcção
Comentar