Estudo em famílias portuguesas revela que doença dos pezinhos piora de pais para filhos

O resultado poderá ter implicações importantes no tratamento e aconselhamento das pessoas afectadas – e ainda na compreensão das causas genéticas desta e de outras doenças neurodegenerativas.

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A doença dos pezinhos é uma doença hereditária que foi descrita pela primeira vez na população portuguesa, nos anos 1940 Fernando Veludo/nFactos

Cientistas da Universidade do Porto mostraram, pela primeira vez, não só que a gravidade da chamada “doença dos pezinhos” aumenta ao longo das gerações, mas que a idade em que se manifesta também depende do sexo do progenitor que a transmite e da descendência que a herda. Os seus resultados foram publicados numa das últimas edições da revista Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry.

A doença dos pezinhos ou paramiloidose – ou ainda, polineuropatia amiloidótica familiar – é uma doença hereditária que foi descrita pela primeira vez na população portuguesa, nos anos 1940, pelo neurologista Corino de Andrade. Terá começado a espalhar-se há uns 500 anos, de Portugal para países como o Japão, a Suécia ou o Brasil, e afecta umas dez mil pessoas no mundo. Embora se trate de uma doença rara, Portugal é de longe o país mais atingido: em Vila do Conde, uma pessoa em cada mil tem a doença e duas em cada mil são portadoras do defeito genético.

A paramiloidose é provocada por mutações pontuais no gene de uma proteína, a transtirretina, que dão origem a depósitos anormais, ditos amilóides, em especial à volta dos nervos. Na ausência de tratatamento, as consequências são fatais em apenas dez anos.

Basta herdar o gene mutante de um dos pais (o risco de isto acontecer para cada filho de um portador é de 50%) para ter uma probabilidade de 70% de desenvolver a doença. Os sintomas, que costumam surgir entre os 25 e os 35 anos, são no início formigueiros nos pés – daí o nome comum da doença. Mais tarde surgem insensibilidade, dores, fraqueza e degenerescência muscular, problemas renais e cardíacos.  Quanto mais cedo se manifesta, maior costuma ser a gravidade dos estragos que causa.                                                 

A doença não tem cura, e até há pouco a única opção era um transplante de fígado.Contudo, um fármaco está disponível desde 2011, o tafamidis, que, administrado precocemente, pode travar a deterioração do sistema nervoso.

Antecipação genética
Quanto a este fenómeno de agravamento geracional – ou “antecipação genética” – agora descoberto pela equipa de Carolina Lemos e Alda Sousa, ambas do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) e do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto, ele já é conhecido noutras doenças hereditárias do sistema nervoso, tais como a doença de Huntington ou a síndrome do X frágil. Nestas doenças, em que o defeito genético responsável é uma repetição excessiva de um dado fragmento de ADN, o número de repetições anormais tende a aumentar de pais para filhos – e, com ele, a gravidade da doença.

Mas o facto de o mesmo fenómeno ter agora sido demonstrado numa doença devida a um outro tipo de mutações permite pensar que também a antecipação genética poderá ter um papel na doença de Alzheimer e até no cancro, explica um comunicado da Ciência Viva - Agência Nacional para a Cultura Científica e Tecnológica. E mais: as diferenças ligadas ao sexo agora detectadas sugerem que as hormonas sexuais poderão estar implicadas na doença dos pezinhos.

Para testar a existência deste processo de agravamento geracional da doença, os cientistas recorreram à maior base de dados de doentes com paramiloidose do mundo: a do Hospital de Santo António, no Porto. Analisaram os casos de 926 pares de pais (mães) e filhos(as), pertencentes a 284 famílias originárias de todo o país.

Constataram então que, na maior parte dos casos, quando o progenitor desenvolvera a doença tardiamente, na casa dos 50 anos, a maior parte dos seus filhos a desenvolveriam mais cedo – na casa dos 40. Mas o inverso não era verdade: o facto de os pais a terem tido mais cedo não fazia com que os seus filhos a tivessem mais tarde. E mais: o risco de a doença surgir nos filhos antes dos 30 anos era alto quando os pais a tinham tido por volta dos 40, mas quase nula se os pais a tivessem tido após os 70 anos. “Estes dados confirmam que a antecipação também é um fenómeno biológico real” na doença dos pezinhos, escrevem os cientistas.

A equipa também descobriu que as mulheres tendem a manifestar a doença mais tarde do que os homens – e que o sexo do progenitor que transmite a doença também influi sobre a idade em que a doença surge nos filhos. Em particular, as maiores diferenças intergeracionais na idade de início da doença verificaram-se quando era a mãe a transmitir a doença a um filho, não havendo diferença quase nenhuma quando era o pai a transmiti-la a uma filha.

Os resultados poderão ter importantes implicações clínicas – em especial quanto à altura em que o tratamento com tafamidis deve ser iniciado nos portadores da mutação para optimizar os seus efeitos terapêuticos.

Segundo Catarina Lemos, citada no mesmo comunicado, o facto de se perceber melhor os efeitos do sexo do progenitor sobre a idade de manifestação da doença dos pezinhos sugere ainda que, para desvendar os mecanismos da antecipação genética subjacentes, os estudos “devem focar-se nas famílias e não nos indivíduos”.

A antecipação genética também poderá estar implicada em doenças neurodegenerativas associadas ao envelhecimento, como a doença de Alzheimer, que se caracterizam por depósitos amilóides anormais no cérebro e que também apresentam formas mais precoces e ou mais tardias.

“Os nossos resultados poderão ter importantes implicações para outras doenças igualmente provocadas por mutações pontuais, uma vez que os mecanismos de antecipação [que não resultam da repetição de um dado fragmento de ADN] ainda são enigmáticos”, diz Catarina Lemos.
 

   

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