Estrada para John Fante

Antes de Fante, não imaginava que se poderia escrever assim, sem medo, sem censura, sem super-ego.

A obra literária de John Fante afigura-se-me como uma das mais originais do século XX. Obviamente teremos de descontar os autores do período da mitteleuropa, entre os quais Musil não tem quem se lhe compare. Mas é justamente porque se contrapõe a uma literatura erudita e refinada que John Fante ganha um lugar entre os grandes do século e provavelmente entre os mais esquecidos. Não se trata apenas da criação do inominável quanto histriónico alter ego, Arturo (Gabriel) Bandini, que lhe vale centenas de parágrafos hilariantes, de compaixão, de razões contraditórias, de terna franqueza, de comportamentos irresponsáveis e atitudes desenquadradas. Não: Fante é invejável na recriação de uma literatura de autenticidade, despojada de afectação. Lê-lo é confrontarmo-nos com o risível de que somos feitos, com as nossas misérias, os nossos planos mesquinhos, a iniquidade das nossas pretensões ou a tibieza das nossas fantasias. Somos heróis e fracos em simultâneo, ridículos semideuses, e essa é uma lição do autor. A despretensão de quem é capaz de rir de si, fingindo não o fazer – para o fazer ainda melhor. 

Antes de Fante, não imaginava que se poderia escrever assim, sem medo, sem censura, sem super-ego. Há quem diga que a literatura não salva – a metáfora está gasta. Mas Fante foi o único escritor que alguma vez me fez chorar (A Confraria do Vinho, página 201) – e também assim me salvou. Não supunha, pois, que fosse possível chegar tão longe em literatura – o que certas músicas e filmes alcançam de modo fácil. Só que Fante foi capaz. Com a sua escrita, rio, comovo-me, emudeço. E, sobretudo, revejo-me. Lá estou eu – como foi o tipo capaz de escrever sobre mim, um pobre diabo de um leitor com pretensões literárias? Como se permitiu revelar as mais fortes emoções sem as temer? É um facto que a estratégia narrativa de uma focalização interna coincidente com um narrador autodiegético permitiu ao autor a criação de uma personagem com uma perspectiva parcelar do universo, o que melhor encaixa num predicador que resvala entre a mágoa, o sarcasmo e o azedume, conferindo-lhe ainda um plano de uma vulnerabilidade invulgar. Fante foi grandioso na sua eficácia de auto-sacrifício.

Dele saiu há pouco tempo Estrada para Los Angeles (Alfaguara, 2013), curiosamente o seu primeiro romance. Já outros três haviam sido traduzidos para a nossa língua, entre os quais (e por ordem) A Confraria do Vinho (Teorema, 2007), Pergunta ao Pó (Ahab, 2009), A Primavera Há-de Chegar, Bandini (Ahab, 2010). Escreveu em especial sobre a sua vida, as suas ligações amorosas, as desilusões literárias, a família. Dedicou um romance às relações familiares, outro a uma relação passional conflituosa, e um outro à relação entre um filho e um pai. Neste último (Estrada para Los Angeles), portanto o primeiro, adivinha-se o embrião antinómico da sua escrita, obra onde quase todos os temas posteriores são aflorados, apesar da ausência paterna. O autor está em todas: na sua nudez mais exposta e numa crueza que vale toda a ternura do mundo. Foi capaz de escrever sobre o pai (as suas infidelidades, o problema do alcoolismo) com uma ternura inigualável. Mesmo que os seus livros possam ser considerados caricatos, passa por eles uma humanidade que é deste mundo e que só parece estranha porque faz parte das nossas vidas. Enquanto a maioria dos escritores se põe em bicos de pés, aperta o colarinho e regurgita as suas máximas pela boca de várias personagens (a literatura que nos cerca é francamente medíocre e uma burla), Fante sujeita a sua existência ao nosso arbítrio, sem qualquer instinto de fuga. Não conheço maior generosidade literária.

John Fante é indiscutivelmente o meu herói plumitivo. Todos temos direito a um capricho (palavra certeira neste contexto), até em literatura. Não tenho já idade para o poster no quarto, os cromos, a estampa na secretária – certo é que ele se entranhou e vive dentro de mim como algo que alimenta o meu curto génio, se é que algo mo concede. Além de que me faz sentir normal, terreno, alguém da tribo e que não precisa de ser olhado com desconfiança. O ser mais limitado que conheço, eu mesmo. Fante faz isso por nós. Lê-lo é ler uma longa oração. Reconciliamo-nos com o mundo ao conhecermos o tamanho das nossas figuras. Nem a Bíblia é capaz de tanto.

E Fante é tudo, menos a forma acabada de uma referência moral.

Professor

 

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