O pequeno teatro do assassino em massa

Membros de “esquadrões da morte” na Indonésia de Suharto reconstituem, numa mascarada demente, as cenas de tortura e assassinato em que estiveram envolvidos. É uma pantomima diabólica.

Acasos da distribuição levam-nos outra vez, poucas semanas depois do filme de Rithy Panh sobre o genocídio cambojano (A Imagem que Falta), para as grandes violências, politicamente motivadas, no sudeste asiático. Em causa agora está a Indonésia, e aquele período da segunda metade dos anos 60, a seguir à subida ao poder de Suharto, em que “esquadrões da morte” superiormente patrocinados se encarregaram de chacinar opositores ao novo regime, sobretudo “comunistas”, em número indeterminado mas que as estimativas mais pessimistas indicam poder chegar ao milhão e meio de pessoas, escala genocida.


Ao contrário do que aconteceu no Camboja, a Indonésia nunca promoveu qualquer ajuste de contas com este passado sangrento, muito menos através do seu aparelho de Justiça, e os assassinos continuam a levar vidas “normais”, gozando até alguma consideração social advinda dos actos que cometeram no passado.

É em direcção a esta história que se encaminha O Acto de Matar, primeiro filme realizado por Joshua Oppenheimer, americano radicado na Dinamarca (país que surge, com a Noruega e o Reino Unido, entre os co-produtores). Desde as suas primeiras apresentações públicas em 2012, no circuito dos festivais, tem feito sensação, e deixado um rasto de enorme estima, principalmente entre a crítica anglo-saxónica, onde foi presença recorrente em várias listas dos “melhores do ano” de 2012. Ainda antes disso, já tinha seduzido luminárias como Werner Herzog ou Errol Morris, que fizeram o suficiente pela concretização do projecto para virem creditados como produtores executivos.

O título designa com precisão o objecto do interesse de Oppenheimer: “o acto de matar”. E portanto, o papel dos assassinos, não o papel, ou o lugar, das vítimas. Estará a raiz da enorme ambivalência que (nos) suscita este filme, obra seguramente singular mas altamente desconcertante, que é como a versão “documental” duma quantidade de filmes (Tarantino vem ao espírito) que se debruçam, ficcionalmente, sobre os meandros psicológicos de assassinos, torcionários e outros sádicos. Oppenheimer reuniu uma série deles (com centro num protagonista, o abjecto Anwar Congo), homens cheios de sangue nas mãos que nunca tiveram que se debater com nada que os fizesse olhar bem para esse sangue. É, como no filme de Rithy Panh, uma “imagem que falta”; mas se o cambojano, para além de falar do seu próprio sangue, suprimia essa falta com figurinhas de argila, Oppenheimer tem à sua disposição a carne e osso de verdadeiros assassinos.

E a carne e o osso do seu filme são uma espécie de “pequeno teatro do mass murderer”, onde estes homens, entre piadas e, na melhor das hipóteses, uma levíssima sombra de dúvida sobre a justeza dos seus actos passados, reconstituem para Oppenheimer, numa mascarada demente, as cenas de tortura e assassinato em que estiveram envolvidos. “Pequeno teatro” ou “pequeno cinema”, visto que estes homens, que até falam de filmes e conhecem as velhas produtores americanas de cor e salteado, colhem a inspiração para as suas reconstituições nos géneros clássicos, do policial ao filme de guerra - e com uma excepção significativa, que também é o lugar do filme para o remorso, sempre no papel dos “heróis”, quer dizer, dos carrascos. Assiste-se a esta pantomima diabólica de queixo caído, é um facto, mas - ambivalência - com a sensação de que o filme vive daquele espectáculo, habita aquele espectáculo, com uma falta de distância perigosa. E se essa falta de distância, na ficção (Tarantino outra vez) é interessante por ser perigosa, também não conseguimos esquecer que O Acto de Matar está incrustrado num contexto real e concreto, e que o seu vampirismo não é livre de consequências: há aqui “imagens que faltam”, de facto, e que o filme não quer, ou não pode, fazer aparecer para além da pantomima (o carrasco que, a dada altura, se põe no lugar da vítima, assim pateticamente “compreendendo”, tantos anos depois, o sofrimento que infligiu).

Essas “imagens que faltam” são as das vítimas, e são as de um real, efectivo, confronto destes homens com os seus actos, muito para além da “metafísica da culpa” em que, nas sequências finais, Oppenheimer mergulha o seu protagonista. A História, a realidade, a realidade dos factos, são a pedra no sapato de O Acto de Matar, filme que, no fundo, é incapaz de resolver a contradição entre o seu desejo de falar, em abstracto, do “acto de matar”, e a circunstância de “matar” não ser, em caso algum, uma abstracção: não se mata ar, mata-se outro. Mas o outro, aqui, não se vê, não tem lugar, é a imagem que falta.

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