Era pós-racial: o tempo urge

É fácil apoiar causas contra a discriminação de raça e género através das redes sociais. Difícil, difícil é manter o respeito sem deslizes no dia-a-dia, através de gestos concretos

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“Éramos os três negros. Estudávamos Direito e num certo dia, fizemos um pacto. Vamos manter-nos os três em grupo, aconteça o que acontecer. A dada altura, um deles foi convidado para ser membro de um grupo secreto, daqueles que se reúnem à noite num pub meio obscuro. Quando resolveu convidar-nos a entrar nesse mundo novo, o meu outro amigo e eu fomos bater à porta, sem medos. Quando ele nos abriu, olhou para mim e disse: “Desculpa Kim, mas terás que entrar pelos calaboiços.” Daí, jurei que iria fazer da minha luta o direito das mulheres. Das mulheres negras.”

Kimberlé Crenshaw é afro-americana. É isso e muito mais. É co-fundadora do African American Policy Forum, dedicado a promover e a expandir a justiça racial e igualdade de géneros a nível global. Foi membro da Conferência Mundial sobre Racismo da UE e é professora catedrática em duas Universidades de topo dos EUA.

Desta vez, encheu plateia na London School of Economics, numa conferência sobre a interseccionalidade. Mas, afinal, o que vem a ser isso? E mais, estaremos realmente numa era pós-racial? Dá que pensar. Estou em Londres há poucas semanas e o famoso cliché “London is a cultural melting pot” continua a assentar-lhe que nem uma luva. O mundo de hoje gaba-se, e muito, da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, do respeito pela diferença e da valorização cultural de cada raça. Mas até que ponto será isto realmente posto em prática?

Quando a cor (negra, neste caso) e o género feminino colidem, eis que surge a teoria da interseccionalidade, defendida por Crenshaw em 1989. Como um dois em um – mas sem vantagens nem poupanças. As feministas defendem que compreender a interseccionalidade torna-se elemento vital na conquista de igualdade socio-política, melhorando assim o nosso sistema democrático.

Em termos históricos, a luta pela dignidade das mulheres, e mais ainda as de cor, tem registado avanços notórios. Ainda assim, apenas 27 dos 1941 líderes nacionais durante o século XX foram do sexo feminino. Nos EUA, as mulheres no geral ganham 77 cêntimos de cada dólar ganho pelos homens, ao passo que uma mulher negra ganha apenas 65 cêntimos por cada dólar ganho por um homem branco. Ainda assim, no dia que Barack Obama foi eleito Presidente dos EUA, o Senado perdeu o seu único homem negro.

Serve também de exemplo a mais recente campanha fotográfica iniciada por alunos da prestigiada Universidade de Harvard (Massachussets, EUA) que deu voz aos seus estudantes de cor negra. Estes consideram sofrer de discriminição e desvalorização no campus universitário. Custa a crer que numa instituição de ensino superior, onde estão reunidos grandes académicos do mundo, seja ainda necessário recorrer a este tipo de manifesto.

Em Portugal, uma directiva europeia aprovada em Janeiro 2013 obriga a que as mulheres preencham 40% dos cargos administrativos das empresas cotadas em bolsa até 2020. Se uma empresa tem por princípio contratar e promover quem melhor desempenha as funções em questão, como pode o género ter peso nesta decisão? Como chegámos ao ponto de precisarmos deste tipo de directivas, como se de um castigo de escolar se tratasse?

É fácil criar directivas. Também é fácil apoiar causas contra a discriminação de raça e género através das redes sociais. Mais ainda, oferecer uma flor a uma mulher no dia 8 de Março. Difícil, difícil é manter o respeito sem deslizes no dia-a-dia, através de gestos concretos.

Parece que ainda estamos longe de uma era pós-racial. Ao fim e ao cabo, “a desigualdade não é distribuída de forma igual.”

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