A terminadora

Mel foi a primeira longa-metragem realizada por Valeria Golino, que alguns conhecerão como actriz de vasta carreira no cinema italiano com algumas incursões pelo americano (onde entrou em coisas tão distintas como o Rain Man de Barry Levinson e o Fuga de Los Angeles de John Carpenter). Mel, cujo argumento se baseia numa obra literária de autor italiano (Mauro Covacich), aborda um daqueles temas que o léxico político comum entendeu apelidar de “fracturantes”: a eutanásia, o suicídio assistido a pedido de doentes terminais que não querem pelo momento em que a doença os termine.


A eutanásia é terminantemente proibida pela lei italiana, o que justifica o ambiente do filme, e a clandestinidade em que se move a sua protagonista (Jasmine Trinca, que já foi “filha” de Nanni Moretti em O Quarto do Filho), conhecida pelo nome de código - Mel - que Golino puxa para o título. Isto dito, não se espere uma lição de moral ou uma sessão de proselitismo pró ou contra a eutanásia: a principal virtude do filme reside no facto de se tratar, muito mais, de um “estudo de personagem”, a desta rapariga “terminator”, pragmática e convicta, do que de um discurso temático. E Golino demonstra uma certa facilidade em entrar no “ritmo”, no ritmo de uma boa porção do mais corrente e actual cinema dito “de autor”: o olhar ao mesmo tempo directo e esquivo, parco em explicações (demora alguns minutos de filme até se tornar clara a actividade da rapariga) e em psicologia servida à colherada, uma razoavelmente conseguida maneira de fundir a acção e a contemplação, o cuidado dramaticamente calculado (talvez até em demasia) da construção dos ambientes (sobretudo as cenas da eutanásia propriamente dita, com as suas “bandas sonoras” que vão de Bach aos Radiohead).

Já lemos aproximações de Mel aos filmes de Lucrécia Martel, o que não parece injusto. O outro lado da moeda é que é justamente esta espécie de “correcção artística”, este lado up to date, que parece tolher o filme, impedir o aparecimento de uma verdadeira voz, ou funcionar como defesa quando as coisas se complicam - e neste aspecto, o grande confronto do filme (o de Mel com um velho que quer simplesmente morrer por morrer, não está doente) acaba por suscitar reverberações que em muito ultrapassam o “tema”, e que a nosso ver ficam um pouco desamparadas. Mas é uma estreia interessante, suficientemente interessante para que se aguarde a próxima experiência de Golino com alguma curiosidade.

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