"Oh Gui, olha um râguebi novo!"

Sem passar a bola para trás, o Cascais Rugby está na linha da frente mundial no que se refere à adaptação da modalidade a atletas com deficiência profunda

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Oxana Ianin

O que é que se grita ao adversário quando se é surdo? Ou quando não se sabe falar? Para a maioria dos praticantes e adeptos de râguebi, a questão nunca se colocou, nem em dias de afonia provocada por gripe. Mas para cerca de 20 atletas de Cascais com diferentes deficiências e diversos graus de incapacidade física e cerebral, houve que escolher um lema com sílabas simples, de vogais abertas, que pudesse ser facilmente pronunciado tanto por portadores de Trissomia 21, por exemplo, como por autistas.

Foi assim que o "Oh Gui" que serve de grito de guerra ao Cascais Rugby passou a baptizar também o projecto de râguebi adaptado com que essa colectividade fez história a nível mundial e vem há quatro anos transformando a vida de vários indivíduos: os jogadores com deficiência do Centro de Reabilitação e Integração de Deficientes (CRID), os atletas em idêntica situação da Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais (CERCICA) e, consequentemente, todas as outras pessoal que lidam com esses jovens e adultos no seu quotidiano normal.

Na origem da mudança está Ana Rita Vasconcelos, que se diz ligada ao Dramático "pelo matrimónio", já que casou com um atleta da modalidade e acabou apaixonada pelo râguebi adaptado após o desafio que lhe lançaram durante as jornadas de Voluntariado Jovem da Junta de Freguesia de Cascais. "Pediram-nos que fizéssemos um treino semanal com os utentes da CERCICA e do CRID, e nós achámos piada", recorda.

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O que Ana Rita não sabia nessa altura era a dimensão do caminho a desbravar: "Estávamos convencidos de que já haveria gente a fazer o que nós queríamos, mas ninguém se dedicava ao que realmente fazemos aqui, que é râguebi para deficientes mentais profundos, de diferentes tipologias. Mesmo federações tão poderosas como a neozelandesa não tinham nada escrito sobre o assunto e nós tivemos que começar do zero, com as coisas mais básicas, como a definição das regras de jogo".

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A adaptação à realidade da deficiência começa aí: se os valores humanos difundidos pelas equipas da CERCICA e do CRID são os mesmos do râguebi normal, já as suas regras são totalmente distintas. Foram definidas para garantir que atletas de ambos os sexos possam jogar em igualdade de circunstâncias, independentemente da sua idade – que, no caso do "Oh Gui", varia entre os 17 e os 43 anos – ou da sua condição clínica – que, na mesma equipa, poderá incluir desde a debilidade motora típica da deficiência cerebral às incapacidades associadas à Síndrome do X Frágil ou à Espinha Bífida.

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Um jogo de râguebi adaptado começa assim por fazer-se com sete elementos de cada lado, num campo com um quarto da dimensão habitual na modalidade regular. Depois, quando manipulada com a mão, a bola lança-se sempre para o lado porque, para alguns atletas, o conceito sensorial de "passar para trás" não é conciliável com o exercício de jogar para a frente, na direcção de um ensaio.

"Há jogadores com quem tivemos que fazer um trabalho inicial tão básico quanto ensiná-los a correr", realça Ana Rita Vasconcelos. "Noutros casos, os atletas não ouvem e por isso os avisos sonoros dos árbitros são complementados com sinais visuais como o stop de trânsito, que todos percebem que é para parar o jogo", acrescenta. Placagens efectivas não existem – algumas formas de autismo podem expressar-se em comportamentos particularmente agressivos e o Dramático não quer incentivá-los – e "rucks e touches também não há".

Num jogo tão diferente, o que é resta então do râguebi autêntico? "Os valores", proclama a coordenadora do "Oh Gui". Afinal, quando as duas equipas se reúnem para o treino todas as quintas-feiras, o projecto está não apenas a combater o sedentarismo e a obesidade que são característicos da deficiência profunda, mas também a difundir princípios humanos e sociais que os atletas do CRID e da CERCICA levam consigo para o balneário e para a sua vida exterior, do dia-a-dia.

"O primeiro ano foi sobretudo de teste, com o projecto a afirmar-se com recurso a progressos graduais, na base de tentativa e erro", recorda Ana Rita Vasconcelos. "Mas o que se nota agora é uma melhoria fantástica na interacção dos jogadores com os outros, seja nas instituições onde passam a maior parte do dia, seja em casa, com a própria família".

Estabelecendo um paralelo entre o exercício normal da modalidade e a sua prática adaptada, essa responsável assume as diferenças na componente física, mas não faz distinções ao nível do espírito. "Estes atletas aderiram completamente ao râguebi – aderiram ao jogo em si mesmo e jogam a sério, dentro das suas limitações; e aderiram aos valores da modalidade, que incorporaram nas suas vidas".

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