A ditadura do imediato e do falsamente evidente

A 7 de Maio de 1935 Edmund Husserl proferiu no Osterreichisches Museum de Viena uma conferência, que se viria a tornar célebre, intitulada “ A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia”.

O sucesso foi de tal ordem que a conferência acabou por ser repetida a 10 de Maio. O texto termina da seguinte forma: “ O maior perigo da Europa é o cansaço. Se lutarmos contra este perigo de todos os perigos como bons europeus, com aquela valentia que não se rende nem diante de uma luta infinita, então, do incêndio aniquilador da incredulidade, do fogo consumptivo do desespero a respeito da missão humana do Ocidente, das cinzas do cansaço enorme, ressuscitará a Fénix de uma interioridade de vida e de uma nova espiritualidade, como penhor de um grande e longínquo futuro para o homem – porque só o espírito é imortal”.

Como nos ressoam estranhas e distantes estas palavras, tão alheias ao linguajar do presente, aparentemente condenadas ao esquecimento, remetidas para esse lugar em que o tempo por vezes se transmuta em arcaísmo, o passado. Já decorreu quase um século desde o instante em que foram pronunciadas. Husserl identificava então a origem da crise da consciência europeia num transvio da ideia de Razão. A supremacia absoluta de um padrão de racionalidade, associado àquilo que ele designava como as ciências matemáticas da Natureza, tinha como consequência inevitável um perigoso estreitamento das ideias fundacionais da cultura europeia, plenamente presentes no pensamento grego. Diante de tão perturbadora circunstância o filósofo alemão, em lugar de cair numa apologia do irracionalismo, optou por apelar à recuperação de uma perspectiva da racionalidade mais vasta e autêntica, capaz de proporcionar o reencontro com a subjetividade da vida humana. Essa recuperação de uma noção mais vasta e profunda do conceito de Razão constituiria mesmo a missão histórica da cultura europeia que estava, aliás, confrontada com um dilema radical: o abandono a uma decadência bárbara ou a renascimento espiritual pela via de um heroísmo da própria Razão.

Nos últimos oitenta anos uma parte significativa da História Europeia oscilou entre o culto dogmático de uma racionalidade menor e o fascínio patológico por um irracionalismo criminoso. Uma e outra via não se excluíram inteiramente, como facilmente se pode comprovar nas experiências históricas limite que o Nazismo e o Estalinismo constituíram. Apesar disso, também se assistiu ao surgimento de movimentos de inegável importância inspirados numa racionalidade mais autêntica e complexa e que se manifestaram quer sob a forma de resistência, quer na modalidade de construções institucionais.  O projecto político europeu erigido a partir dos escombros da Segunda Guerra Mundial inscreve-se inquestionavelmente neste segundo grupo. É verdade que não havendo fenómenos históricos e políticos integralmente puros o projecto europeu incorporou, desde a sua génese, um apreciável grau de ambiguidade na articulação de pulsões tecnocráticas, de inspirações ético-políticas e de interesses de natureza nacional ou corporativa. Isso não impediu, contudo, a obtenção de uma síntese a todos os títulos apreciável e consentânea com as elevadas exigências husserlianas. Talvez por isso mesmo os espíritos mais simples e especialmente propensos a uma certa exaltação metafísica e melodramática tenham recorrido com inusitada frequência à enunciação de um imaginado “destino europeu”. Não adviria daí grande mal ao mundo. Os grandes feitos também carecem de grandes ilusões.

Eis que, de súbito, o projecto europeu parece encaminhar-se para um abismo. Uma geração de governantes com poucas leituras, de economistas com demasiadas certezas e de intelectuais com excessiva leveza está prestes a colocar-nos à beira do desastre. Talvez seja a hora de voltarmos a Husserl. Entre o infame bufão italiano Beppe Grillo, os pretensiosos seguidores de uma tecnocracia liberal e os ingénuos declamadores de um neomarxismo de pacotilha ainda restará algum lugar para a afirmação da exigência do grande pensamento ocidental. Esse pensamento funda a democracia, gera o respeito pela liberdade individual e origina a representação igualitária da cidadania. Dirão alguns que também fomentou o imperialismo, o colonialismo e o eurocentrismo. Têm razão mas há muito tempo que esses males foram percebidos e combatidos pela razão crítica europeia.

Não tenhamos ilusões: as nossas democracias estão doentes e a cura, por muito contra-intuitivo  que tal possa parecer, não reside num acréscimo de participação, transparência e proximidade. Pelo contrário, a tragédia do tempo presente não radica na existência de representantes e dirigentes políticos demasiado distantes do pulsar popular, mas antes na rarefacção de políticos suficientemente corajosos para assumirem, com a devida ponderação, algum distanciamento crítico face à ditadura do imediato e do falsamente evidente. Tal como não se faz boa literatura com bons sentimentos, também não se afigura possível levar a cabo uma condigna acção política tendo como referência os arquétipos mentais prevalecentes na lógica comunicacional das redes sociais.

Husserl, há quase um século, nessa cidade especial que Viena então era, alertou para um risco muito perigoso: a Europa poderia ser vencida pelo cansaço. Cansaço de uma Razão vasta e autêntica. Cansaço de um espírito crítico culto e exigente. Cansaço de um humanismo cosmopolita. Cansaço da Filosofia enquanto expressão de uma consciência universal.

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