Emoções límpidas

Dizia-nos ele há alguns anos, em entrevista, que chegado aos 50 havia percebido que não era possível mudar muitas das coisas que tinha vontade de transformar no mundo. Não era desistência, era maior consciência de si e dos outros. E concluía: “Percebi que quando não podemos mudar o mundo, podemos ao menos mudar a nossa relação com ele e isso passa também por saber olhar para a beleza à nossa volta.” 

É isso. Dir-se-ia que as obsessões, e a forma como ele as expõe, não mudaram assim tanto ao longo dos anos, mas hoje Nick Cave está mas clarividente. E isso sente-se em palco. É difícil encontrar no universo rock actual alguém que seja tão veemente e ao mesmo tempo tão preciso em palco. E isso é tão visível quando se entrega à interpretação de canções rock virulentas como quando deixa vir ao de cima a chama de baladeiro. 

Live From KCRW está mais próximo do segundo registo, sendo um excelente complemento do álbum do ano passado, Push The Sky Away, um dos seus melhores da última década. Constituído por recriações de algumas canções daquele álbum e por outras de carácter intemporal, como The mercy seat ou People ain’t no good, apenas na abordagem a Jack the ripper os Bad Seeds se lançam numa inflexão mais incisiva. 

O resto é dominado por uma orquestração esquelética, em que todos os instrumentos se ouvem na perfeição, cada um deles disposto a seu canto, fazendo sobressair a voz de Nick Cave, ora magoada, ora irónica. O ambiente global, até na relação que se vai estabelecendo com o público, é sereno, longe portanto da catarse que os seus concertos podem ser. 

O que é mais notável é perceber-se que os seus executantes poderiam fazer o que desejassem àquelas canções. Neste caso, optaram por temperá-las com emoções límpidas, mas rapidamente poderiam despedaçá-las de forma tóxica a partir do interior se assim desejassem. 

Não é a mesma coisa que assistir a uma actuação ao vivo, mas acaba por constituir um muito bom substituto para ouvir e estudar na sala de estar. 

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