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Ana Guiomar vai na sua terceira peça de teatro: antes de Vénus de Vison houve Purga, em 2011, e Há muitas razões para uma pessoa querer ser bonita, em 2012 Daniel Rocha

Há actrizes que surgem quando não esperamos. Desde a semana passada, no Teatro Aberto, Vénus de Vison põe-nos a olhar para uma rapariga que deixa tudo no palco. É uma sorte podermos ser suas testemunhas

De tempos a tempos, aparece alguém assim, disfarçando atrás das personagens uma energia e uma vontade que primeiro nos intimida, a seguir nos intriga e depois nos enreda como se fosse hipnótica — portanto, da ordem do invisível — a sua energia. De tempos a tempos, actrizes como Ana Guiomar deitam por terra os pruridos (para não sermos cruéis e dizermos antes preconceitos) sobre raparigas como ela, que deixam tudo no palco em interpretações que não se poupam a nada e que sacrificam uma estratégia de sedução à força de uma intuição visceral, dura, crua, por demais verdadeira.

É tudo teatro, é tudo representação e, no entanto, quando Ana Guiomar entra em palco, num esconso cenário que pretende representar o interior de um teatro, com roupas que não a poupam à caricatura de uma actriz esforçada mas sem talento, as palavras de Tomás, o encenador interpretado por Pedro Laginha, tornam-se vazias de sentido. Uma só frase, um rebentar de portas, uma rajada de força, uma pergunta que se tornará retórica — “Estou muito atrasada? Estou muito atrasada, não é?” — e “porra, merda!”, eis Vanda Jordão, aliás Vanda von Dunayev, aliás Ana Guiomar, 25 anos, a mostrar como estávamos todos enganados quando acreditámos nas palavras de Tomás: “Não existem mulheres deste género. Jovens ou, pronto, com ar jovem, Não há mulheres bonitas que sejam sexy. Mulheres jovens e sexy e que saibam falar, com alguma formação e minimamente inteligentes. Será pedir muito? Uma actriz que consiga realmente pronunciar a palavra ‘degradante’ sem precisar de ter aulas de dicção?”.

Vénus de Vison, que se estreou há uma semana no Teatro Aberto, em Lisboa, é a terceira peça de teatro que Ana Guiomar intepreta e a segunda que protagoniza. O duplo papel que interpreta na peça de David Ives (a mesma da qual partiu Roman Polanski para o filme homónimo), encenada por Marta Dias, podia ser um espelho da dualidade em que habita esta actriz intuitiva que é também uma mulher estratégica. E, no entanto, os olhos castanhos claros, a pele branca, o corpo que não hesita em mostrar como há mais para lá da bela figura da “rapariga do momento”, o riso fácil, os gestos largos, o desejo enorme de se mostrar afável, intensa, apaixonada por tudo como se visse esse tudo pela primeira vez todos os dias, compõem aquilo que Tomás, o encenador, descreve como “emoções excessivas, operáticas”: “Já ninguém se entrega assim. Já ninguém se deixa levar assim pela paixão nem pela raiva.”

Ana Guiomar tem essa força de quem parece acreditar que tudo é possível. Porque não haveria de ser? Olhamos para o seu brevíssimo percurso em palco (Purga, 2011; Há muitas razões para uma pessoa querer ser bonita, 2012; e agora Vénus de Vison) e o que vemos, esquecendo “os papéis de miúda” que faz na televisão há dez anos, é uma actriz em formação como poucas vezes vimos à nossa frente — talvez daquelas que gostaríamos de levar pela mão para mostrar que deveriam estar a fazer as Rosalinas de Shakespeare, as Marcolinas de Goldoni, as Mashas de Tchékov, enfim, as raparigas que se tornam mulheres pelas palavras e pelos desejos dos outros.

Mas depois ouvimos Ana Guiomar dizer que esta personagem com a sua idade é tudo aquilo que não é: “Usa tempos verbais que não usamos, tem uma sensualidade que não tenho, diz as coisas para conseguir outras.” E então percebemos que o que vimos foi o nascimento de uma actriz. E que sorte podermos ter sido testemunhas.

Mas Ana Guiomar sabe que é fácil chegar a esses gestos que, vistos de fora, não passam de uma explosão descontrolada, sem regras, sem ordem, enérgicos mas efémeros. Sabe, por exemplo, que uma personagem como a de Há muitas razões... é uma personagem reconhecível: uma miuda que tem discussões com o namorado como ela tem, que diz palavrões como ela diz. E sabe também que esta intuição que lhe é natural tem de transformar-se numa estratégia. “Há sempre momentos em que sabemos se estamos a fazer bem ou mal, aqui nunca sei e isso deixa-me insegura. Às vezes acho que vão ver até o meu dedo mindinho a mexer, e depois percebo que sou só eu a achar isso.”

Conquistar

Mas essa vergonha que a faz esconder os olhos atrás do cabelo, que lhe faz enrolar o corpo sobre a mesa do café onde nos encontramos, parece uma mentira quando tem de se expor, aberta, intensa, inteira, através das palavras de um texto. Como se descobrisse modos de esconder aquilo que só ela acredita serem as suas fragilidades, nas grandezas, mesmo que violentas, das personagens que tem interpretado (mesmo em Purga, em que era a acossada vítima de um sistema persecutório). “Quero ser vista como alguém que gosta do que faz e que aprende. Não quero ir a um programa de televisão por causa das audiências, mas porque tenho, se tiver, alguma coisa para dizer. Gosto de pensar que sou uma pessoa agradável, com quem se gosta de conversar, e não uma presença mediática nas revistas. Não me sinto à margem, nem pertenço a nenhum grupo. Sempre fui muito adulta, sempre tratei das minhas coisas, sempre tive responsabilidades. Estou sempre à vontade. Mas quando me dizem que sou uma mulherzinha, eu rio-me: ‘Sou uma miúda, nãããooo’.”

Quando na escola lhe disseram para enviar um currículo, não sabia o que era. Quase dez anos depois, quando a convidaram a vir ler para a primeira peça que fez no Teatro Aberto, deram-lhe um texto com passagens em inglês e, para disfarçar a sua timidez com a língua, disse a João Lourenço “Esta parte agora é em inglês, já sabem”, e continuou com o texto. Achou que era para fazer uma coisa pequenina, nem se perguntou se estava ali porque já fazia televisão, mas no fundo chamava a si o mesmo preconceito que sabia ser-lhe apontado: “Esta miúda ao lado da Irene Cruz? Não faz sentido nenhum.” Na televisão, quando havia necessidade de uma rapariga “gira, engraçada”, ia “a Ana Guiomar”. Mas Purga era “muito diferente”. “Uma história a sério, das que as pessoas podem seguir”, disse-lhe o pai, de lágrimas nos olhos.

Ana Guiomar é rápida a pensar, a reagir, a interpelar os outros. Vem de uma escola que a obrigou a lidar com o imediato. O tempo do teatro, da experimentação, é outro tempo, um tempo para conquistar confiança. “É por isso que gosto tanto dos ensaios, mais do que dos espectáculos. Adoro descobrir. É um jogo.”

Para ganhar o quê? “Gostava de fazer teatro com mulheres, gostava de fazer um outro tipo de teatro, pós-dramático, e gostava de fazer grandes clássicos como o Romeu e Julieta. E de interpretar uma gótica, mas uma gótica à séria. E de ganhar a junta de freguesia do Ramalhal [em Torres Vedras] quando tiver 50 anos.” 

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