O regresso de D. Sebastião

“Sebastião morreu, já não volta a nascer.” Assim cantava a Filarmónica Fraude, em 1969, no disco que mais corajosamente falou à minha geração da guerra em África: Epopeia.

Há poucas semanas, o ministro Paulo Portas, com o rigor intelectual e a envergadura cultural que lhe conhecemos, comparou a chegada da troika ao nosso país, a 1580, e a sua futura saída, a 1640. Essa patriótica comparação, que por certo o povo português de imediato apreendeu e agradeceu aliviado, deixou-me a mim estupefacto.

O senhor ministro que me perdoe, mas o que eu tenho entendido da história pátria dessa época nada tem a ver com a sua inflamada comparação, e até a cobre de algum patetismo e estonteado populismo. Se olharmos para o período de 1580-1640 e para o nosso triste presente, a comparação que se impõe, com uma evidência terrífica, é bem outra e exactamente o contrário do que afirma o ilustre ministro: a saída da troika é que vai corresponder a 1580, e quanto a 1640 resta-nos esperar que o que nos espera não dure 60 anos!

Vejamos então: em 1578, um rei fanático, acompanhado por um pequeno círculo de aduladores interesseiros, oportunistas e aventureiros, impôs a sua indecente vontade e afundou o nosso povo e o nosso país num longo período de declínio, desânimo e desesperança. Insensível a todos os conselhos e avisos de desgraça, fundamentalista e obsessivo, impreparado e incompetente, o obstinado monarca precipitou o país e o seu povo numa previsível hecatombe nacional, que começou em 1580 e durou décadas.

Da mesma sorte, temos hoje um governo também fundamentalista e obsessivo, impreparado e incompetente, também acompanhado por um círculo nacional e estrangeiro de aduladores interesseiros, oportunistas e aventureiros, e igualmente insensível perante todos os conselhos e avisos para a previsível hecatombe nacional. Um governo que impõe aos seus cidadãos uma semelhante vontade indecente, que nos vai mergulhar a todos, de novo, num longo período de declínio, desânimo e desesperança. Um governo que, como o rei doente e fanático de ontem, desaparecerá um dia da face da terra deixando atrás de si um rasto duradouro de pobreza, desemprego e infelicidade.

A única diferença reside nas razões publicamente invocadas para o desastre colectivo: de acordo com os poderosos e os áulicos de ontem, o povo português, pecador e libertino, foi castigado por Deus com uma vergonhosa e terrível derrota e com um longo calvário de sofrimento e sacrifício, não tendo mais do que se culpar a si próprio, de se arrepender e de se corrigir. De acordo com os áulicos e os poderosos de hoje, o povo português, gastador e calaceiro, manhoso e piegas, está a ser punido pelos Mercados com uma implacável e letal austeridade e não tem mais do que se culpar a si próprio, de se arrepender e corrigir. Um povo desastrado e infeliz, que Camões pintou, num retrato perfeito e até hoje imperturbado, com os tons sombrios de uma austera, apagada e vil tristeza. O mesmo Camões que, em carta a D. Francisco de Almeida, referindo-se ao desastre de Alcácer-Quibir, à ruína financeira da Coroa portuguesa e à independência nacional, se despediu com estas palavras: "Enfim acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela."

Valha-nos hoje, senhor ministro, para nos animar, a sua impagável brejeirice restauradora, bem mais divertida do que a sua irrevogável consciência política.

Cineasta
 
 
 
 

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