Os cães que tive

A. M. Pires Cabral continua a fazer o inventário de um mundo em retirada, desmantelado pelos homens: Trás-os-Montes.

António M. Pires Cabral foi sempre um activista cultural. Cultor de vários géneros (poesia, teatro, ficção, ensaio...), é porém antes do mais poeta. Como escreve Pedro Mexia na badana de A Gaveta do Fundo, neste livro faz-se “o seu requiem transmontano. E se a morte ou a finitude, sempre se abateu sobre ele — pairando, cercando-o, sendo o solo humedecido, fértil, fantasmático onde as suas palavras germinam, nascem e tornam a nascer, firmando um mundo muito próprio —, aqui ela está mais viva, e adquire com maior frequência um nome próprio. Retrata-se naquele caso singular e no seu quase, no seu fim, ou já mesmo depois. Seja a tia Micas, uma mulher de 90 anos exorcizando denegadamente a velhice para os trapos e que se imagina um dia no céu de esfregona na mão, seja a Miss, cadela a quem deram esse nome por antífrase, pois era gorda. Ou o Dick. Ou o Nalguinhas. A sorte de cada um, chamado pelo nome, ausência concretizada, emociona mais. Não se trata então apenas do transitório e banal curso de tudo e todos — halo contrário, por exemplo, ao rodopio diurno e atrevido das garças rio afora, seguindo os bagos apetecíveis de uva madura (Douro: pizzicato e chula).

A mordacidade de A. M. Pires Cabral gerindo a distância vinga, como sempre, acutilantíssima. Encadeando no leitor o (sor)riso, até pela inserção num mesmo plano de uma terminologia própria da argumentação, fazendo do que é subjectivo uma asserção lógica, sem sujeito, polvilhada de um dito do senso comum, da frase feita, defendendo assim também o leitor de si mesmo, trinchando a negrura (o riso é o melhor antídoto). Vários outros recursos são aqui usados — a retórica da interrogação, das interpelações, do desdobramento dialogado do sujeito poético consigo ou com outrem reconhecível na sua voz, anáforas e outras repetições lexicais, rítmicas e semânticas —, mas o discurso torna-se mais liso, menos expressivo, globalmente mais outonal. Continuando a combinar termos regionais, expressões populares arrebatadas de algures. Ao lado da erosão da vida de todos nós, seres ainda vivos, há a erosão contígua daqueles montes envelhecidos, corrosão de um mundo que não tem como se continuar, como se perfilar reconhecível no seu dia a seguir. As crianças de Grijó não vão voltar a correr à saída da escola, dando vida à vida da população já escassa e velha (Arado). Esse mundo desbastado até pelo desuso agrário não cessa contudo de não acabar, de não se extinguir (“qualquer lugar onde tenha havido trigo/ guarda sempre dele algum sinal/ que não deixa esquecer a antiga seara. (...)// Talvez se trate de uma questão de cheiro. /Ou de uma espécie ignorada de memória/ que se agarra ao lugar e nele persiste.”. Irresistível o Magusto no lar de idosos, onde a “assistente social/ sabe que é preciso manter elevado/ o moral dos residentes” e às tantas um “CD do Quim Barreiros/ pôs os mais afoitos a dançar cinco minutos,/ a bater palmas fora de compasso/ e a cantar com brio os peitos da cabritinha.” No relatório final, a assistente social, fazendo o balanço, considera a acção muito positiva. Alegre é também uma procissão na aldeia sob o ponto de vista do santo no andor.

A par do humor, que desvia tantas vezes a tensão do poema, interrompendo o seu crescendo, reitera-se a força crua, rude, telúrica de algumas imagens que ficam a tilintar dentro do leitor para sempre: um gato que se afasta, como todos os bichos, para se dar à morte, devindo esse que foi esquivo numa massa “envolta em pêlo,/ em vias de fusão, devassada de formigas.// Donde se ausentou o que quer que fosse/ que fazia dele um gato”. Curiosamente, o ethos dos poemas mais bucólicos, muito belos, está próximo de um imaginário de leveza, mais solar: seja a exortação das flores amarelas sem nome, seja a esteva que, desfeita pelas mãos do poeta, lhe lega o seu aroma. Todavia, subrepticiamente, a morte está sempre lá, indominável. Dupla, configurada num mundo perdido e na voz pessoal de quem o enuncia.

A Gaveta do Fundo tem como pilares o primeiro e o último poema: “A gaveta do fundo: onde guardava/ brasas e jóias de família — ou seja, reservas de calor/ para os dias de frio que aí vêm,// A gaveta do fundo: forçada a fechadura, saqueada,/ desmantelada, em tábuas e ferrugens// Dada a beber às altas labaredas/ que, bebendo, multiplicam a sede,/ em vez de a extinguir.” O poema é emblema de uma arte poética da matéria recôndita, lava encalhada de combustão lenta, toda uma vida ardendo que serve ainda a poesia (a Terra Quente, Trás-os-Montes, estação a estação). Paralelamente, incarna um mundo em retirada, desmantelado pelos homens, sem futuro, que se vai descontinuar mas que ainda resiste disperso, aqui e ali, dividido, A pouca vida que sobrou: a nora, a ribeira que uma química sombria contamina, as hortas que os mais velhos cuidam. Restos, sombras, velhos (estes presentes desde o primeiro livro, Algures, a Nordeste, de 1974). O livro termina deixando cair o pano sobre um universo finito: “O último a sair que apague a candeia/ e cerre a porta. Que ratos e morcegos/ possam sem ser perturbados devassar/ o que outrora foi lugar de gente./ apoderar-se dele.// fazer dele o seu salão de baile.”

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