União das Misericórdias convidou 17 pintores a actualizar imagem que é ícone da instituição

A União das Misericórdias Portuguesas desafiou vários artistas contemporâneos a regressar à imagem da Nossa Senhora da Misericórdia. O resultado é uma série de 17 telas sobre o tema, que vão ser mostradas em exposição antes de serem depositadas noutras tantas misericórdias do país, ao lado das representações clássicas deste ícone religioso.

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A Nossa Senhora da Misericórdia de Augusto Canedo
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Acácio Carvalho
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Alberto Péssimo
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Albuquerque Mendes
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Armando Alves
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Artur Moreira
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A Nossa Senhora da Misericórdia de António Goncalves
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Benvindo de Carvalho
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Evelina Oliveira
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Joana Rêgo
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Jaime Silva
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A Nossa Senhora da Misericórdia de José Emidio
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A Nossa Senhora da Misericórdia de José Maia
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Luis Melo
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Luísa Goncalves
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Mário Bismark
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A Nossa Senhora da Misericórdia de Victor Costa

Nossa Senhora já não reza, os anjos praticamente desapareceram e a organização da sociedade perdeu as castas e a rigidez de outros tempos… Mas os homens continuam necessitados da misericórdia e do manto protector da Virgem.

Estas são algumas evidências e o denominador comum das representações que a arte contemporânea faz da Nossa Senhora da Misericórdia, a atentar no resultado do projecto lançado pela União das Misericórdias Portuguesas (UMP), que convidou 17 pintores a actualizar a imagem que é o ícone da instituição.

Numa iniciativa lançada em colaboração com a Cooperativa Árvore, a UMP quis “ver como é que os pintores do século XXI olham para a imagem da Nossa Senhora da Misericórdia”, explica ao PÚBLICO o seu presidente, Manuel Lemos.

O resultado foi mostrado, episodicamente, no dia 30 de Novembro, na galeria da cooperativa portuense, e vai ser exibido por todo o país, ao longo de 2014, através de um roteiro que está ainda em preparação.

Os pintores participantes, numa selecção que privilegiou os cooperantes da Árvore, foram os seguintes: Acácio de Carvalho, Alberto Péssimo, Albuquerque Mendes, Armando Alves, Artur Moreira, António Gonçalves, Augusto Canedo, Benvindo de Carvalho, Evelina Oliveira, Joana Rêgo, Jaime Silva, José Emídio, José Maia, Luís Melo, Luísa Gonçalves, Mário Bismark e Vítor Costa.

Depois de ver a reprodução das obras destes artistas na fotogaleria do PÚBLICO online, e comentando o projecto da UMP, José Tolentino Mendonça salienta que “um dos sinais dos tempos mais estimulantes do nosso tempo é este reencontro da Igreja com as artes”. O padre e poeta nota que “a própria teologia católica tem vivido uma viragem importante, quando nos recorda que para pensar Deus não basta tomar o eixo da verdade ou o do bem: a esses é preciso juntar sempre o eixo da beleza. De facto, a experiência do belo desenha uma ponte entre o sensível e o espiritual, entre o visível e o invisível, entre o que se pode dizer e escutar ao que as nossas palavras não alcançam, nem os nossos ouvidos podem ouvir”.

Já João Fernandes, subdirector do Museu Rainha Sofia, em Madrid, confessa ter dúvidas sobre “a necessidade de ‘actualizar’ uma imagem religiosa”. “Muitas dessas imagens criadas por artistas ao longo da História tocam-nos, religiosos ou não religiosos, por uma inactualidade que as torna sempre actuais.” E o ex-director do Museu de Serralves cita um quadro de que diz gostar muito: “As Sete Obras da Misericórdia pintadas por Caravaggio para uma igreja napolitana, bem actuais ainda no teatro do mundo que o nosso tempo lhes oferece.”

Começar por algum lado
Quanto à escolha dos artistas e à opção pelo recurso à Árvore, Manuel Lemos justifica que “tinha que começar por algum lado”. Não havendo “tempo para lançar um concurso”, o presidente da UMP diz que “a história e o prestígio inquestionável” da cooperativa portuense garantem “um leque muito alargado de pintores e sensibilidades”. E afirma-se “muito satisfeito” com o resultado das 17 pinturas realizadas – havia um 18.º pintor na selecção, que, no entanto, não entregou o trabalho a tempo.

As 17 obras agora concluídas, depois da “digressão” nacional referida, vão ficar na posse de outras tantas misericórdias do país que se associaram à encomenda. A sua distribuição foi já decidida através de um sorteio, “realizado numa base democrática e na ideia de união”, explica Manuel Lemos.

O presidente da UMP avança ter conhecimento de que um número crescente de misericórdias – das 392 que existem em Portugal – manifestou já o seu interesse em se envolver em futuros projectos. E acrescenta ter em mente, por exemplo, desafiar um novo conjunto de artistas a abordar as 14 Obras de Misericórdia (sete corporais e sete espirituais), o que permitiria actualizar o seu significado aos nossos dias. “O que é hoje ‘dar pousada aos peregrinos’? Talvez seja acolher os sem-abrigo”, admite…

A iconografia clássica

A Nossa Senhora da Misericórdia é uma das figurações mais populares da Madona, na vertente da Virgem do Véu ou do Manto, que foi popularizada pelo culto bizantino, mas cuja origem pode mesmo remontar à Antiguidade – vem mencionada, por exemplo, nas Metamorfoses de Ovídio.

Num estudo publicado pela Santa Casa da Misericórdia do Porto (Boletim de Dezembro de 2011), a historiadora de arte Regina Maria Andrade Pereira explica terem existido muitas variantes iconográficas deste tema e descreve assim a mais usual: “A Virgem da Misericórdia é normalmente apresentada em pé, com os braços estendidos, segurando o manto, sob o qual se abriga um numeroso grupo de pessoas, sendo sempre ordenadas por género e estatuto social. Assim, os homens aparecem-nos posicionados à direita da Senhora e as personagens femininas representadas à sua esquerda, figurando em primeiro plano as de maior posição social, alto clero e nobreza, sendo os planos afastados ou mais recônditos preenchidos pelas pessoas de menor condição social.”

A Virgem surge sempre no centro da imagem, em posição frontal, ganhando assim predominância sobre todas as outras figuras. Mas pode também surgir com as mãos em posição orante, tal como sentada ou ainda com o Menino. Com frequência, anjos seguram a coroa ou o manto da Senhora.

A maioria das igrejas e sedes das SCM no país possuem representações da Nossa Senhora em pintura, escultura e mesmo na arquitectura. A sede da do Porto (na Rua das Flores), por exemplo, tem duas: um painel em azulejo, da autoria de Duarte Menezes (anos 1950), feito na Fábrica do Carvalhinho, no hall; e um baixo-relevo em castanho, provavelmente do século XVII, que actualmente se encontra no gabinete do provedor.

Regina Maria Pereira explica que este segundo trabalho, que segue a iconografia tradicional – “e só é arte sacra se mantiver esta iconografia; o artista deve ter a humildade de manter a regra”, defende a historiadora de arte –, foi limpo e restaurado no século XIX, tendo então desaparecido a pintura original que era policromada.

No Porto, há dois outros quadros da Nossa Senhora da Misericórdia, na Casa da Prelada e na Biblioteca Pública Municipal. E, de entre o valioso espólio espalhado pelo país, Regina Maria Pereira cita, como mais relevantes, as imagens das bandeiras processionais das SCM de Lisboa e de Sesimbra, o painel de Jan Provost no Museu Nacional de Arte Antiga e o retábulo da Igreja da Misericórdia de Bragança.

Recorrer aos mestres

Foi sobre esta iconografia consagrada numa longa e riquíssima tradição da história da pintura – em que Rafael foi “o principal produtor de Madonas”, nota Mário Bismarck – que os 17 pintores da Árvore foram convidados a trabalhar.

Alguns assumiram beber directamente na fonte dos grandes nomes dessa tradição. Armando Alves, por exemplo, documenta no verso do seu quadro a influência do pintor italiano do século XIV, Simone Martini, um dos mestres da Escola de Siena. “Fiz uma interpretação o mais realista possível da Senhora de Martini, ligando-a à minha pintura actual, que continua muito marcada pelo Alentejo”, explica o pintor nascido em Estremoz. No seu quadro, enquanto acolhe sob o seu manto as figuras representando os vários estratos da sociedade, Nossa Senhora da Misericórdia é ela própria guardada por uma majestosa oliveira sobre um fundo vermelho – o vermelho e o azul são, de resto, as cores dominantes no conjunto das telas realizadas. (O tema da árvore vai dar origem a uma exposição antológica de Armando Alves na cooperativa portuense, no início do próximo ano.)

Também Joana Rêgo foi beber aos clássicos, concretamente a Piero della Francesca, “mestre que mais [a] cativou”. Para a auréola da Nossa Senhora da Misericórdia a pintora portuense retomou o trabalho sobre folha de ouro, algo que só tinha feito quando era estudante nas Belas-Artes do Porto.

Na sua leitura da iconografia tradicional, Joana Rêgo substituiu as figuras das diferentes classes sociais por corações (cordis) guardados sob o manto da compaixão (miserere) de Nossa Senhora.

Mário Bismarck recorreu igualmente aos clássicos – à Virgem da Misericórdia de Andrea Mantegna, um pintor do Renascimento italiano da viragem dos séculos XV-XVI. Foi o único a representar a Senhora sentada, e com o Menino. E decidiu fundir o manto com o fundo da própria tela. “Interessou-me descascar a pintura, torná-la gasta pelo tempo, uma imagem pictórica arruinada”, explica o artista, que dispensou também a figuração das personagens secundárias. Nossa Senhora é Mater omnium (“Mãe de todos”, pode ler-se na legenda da imagem), “e isso desculpa a ausência das figuras”, justifica Bismarck.

Foi ainda à tradição da pintura italiana que Albuquerque Mendes recorreu para representar o rosto da Senhora com a inevitável auréola. Mas substituiu os anjos por lírios sobre um céu azul. “São os lírios do meu jardim, e o azul do céu foi influenciado pela minha estadia em Marrocos, onde estive a trabalhar a convite da Bienal de Casablanca”, explica o pintor. O resultado da sua Nossa Senhora da Misericórdia é, no entanto, bem diferente da sua ideia inicial, que apontava para “homenagear Fernando Lanhas, através de um quadro de teor abstracto e nada figurativo”.

Albuquerque Mendes acabou por adequar o seu trabalho à encomenda. “Mas inventei figuras simbólicas, como as cabeças e as manchas negras que se organizam, como um puzzle, debaixo do manto.”

Um manto onde, com alguma ironia, Alberto Péssimo colocou as figuras representando as várias artes, previsivelmente numa referência à falta do apoio que os artistas reclamam para o seu trabalho.

Do conjunto dos 17 pintores, Acácio de Carvalho é o único que contornou a figuração antropomórfica da Nossa Senhora da Misericórdia, simbolizando-a, no entanto, através do manto e da coroa.

Artistas são essenciais

“Infelizmente, é bem actual este tema da misericórdia”, nota João Fernandes. E lembra: “A palavra resulta das palavras latinas miseris, cor e dare, que, juntas, significam ‘dar o coração àqueles que são vítimas da miséria’. Uma bela ideia nestes tempos em que a pobreza aumenta, não só no mundo, como no nosso país.” E o subdirector do Rainha Sofia conclui: “Que possa a arte continuar a dar expressão à dignidade e aos direitos dos desvalidos será talvez o melhor que a tradição artística de representação da misericórdia pode ambicionar.”

José Tolentino Mendonça defende que os artistas continuam a “ser essenciais para dizer Deus”. “Os artistas, crentes ou não, têm como matéria do seu trabalho o espiritual. Hoje a Igreja redescobre que precisa dos artistas para que as representações de Deus não fiquem sequestradas pela racionalidade, mas possam tocar aquele reservatório de mistério e de sensibilidade que é o coração do homem.” É por esta razão que o poeta autor de A Papoila e o Monge considera que “é de saudar esta iniciativa em torno à figura de Nossa Senhora da Misericórdia”.
 
 
 
 
 

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