Odisseia de um homem comum

Ben Stiller é uma figura interessante, e os “veículos” anódinos, as comédias rotineiras às vezes mazinhas, em que tem passado parte substancial da carreira, ganham sempre qualquer coisa com a sua personalidade. Vale a pena compará-lo a Jim Carrey, que tem um percurso semelhante mas ao contrário de Stiller nunca se aventurou (e bem devia fazê-lo) a realizar os seus filmes, lembrando de caminho que foi Stiller quem dirigiu, em The Cable Guy (O Melga no título português), um dos mais curiosos filmes de Carrey. Ambos partem normalmente da perspectiva do “homem comum”, entalado entre a profissão e a família (quando existe), figuras apagadas no meio da grande engrenagem moderna; se, depois, Carrey arranca para a fantasia vingativa (possuir um grande poder qualquer e usá-lo discricionariamente), Stiller fica sempre do mesmo lado e o habitual é que a questão seja, para ele, proteger-se da ameaça de um grande poder qualquer. Como, por exemplo, a nova admistração de uma revista (a Life), que quer cortar com o arcaísmo do papel (e da fotografia) e abraçar o admirável mundo novo do digital e do “online” - e com isto falámos já de A Vida Secreta de Walter Mitty.

Que é o quinto filme realizado por Stiller e provavelmente o mais ambicioso de todos. Formalmente é um remake de um filme dos anos 40 de que pouca gente deve hoje ter memória vívida, dirigido por Norman McLeod e protagonizado por Danny Kaye. Stiller aproveita o essencial da narrativa, a personagem do “sonhador” solitário e tristonho que um dia ousa quebrar a monotonia da sua vida e partir numa “demanda” (neste caso, em busca do negativo de uma foto que um célebre fotógrafo pretendia para a última capa em papel da Life). Dando grande volta aos detalhes do filme original, completamente actualizados e “recontextualizados”, Stiller faz desta Vida Secreta de Walter Mitty uma bastante convincente comédia melancólica, onde o percurso pessoal do protagonista está em directa relação com uma dimensão colectiva bastante contemporânea, simbolizada pelo fecho da “Life”, invadida por uma nova espécie de gente de que o filme faz um retrato mordaz (porque como com os grandes cómicos de antanho, o lugar de Stiller é com os rejeitados, os que ficam para trás, os “não-produtivos”).

Stiller filma isso – o “fim de um tempo” - com uma certa severidade e muita intenção, ao mesmo tempo que aproveita o “décor” da Life, e as grandes fotografias que polvilham os corredores, para algumas piscadelas de olho cheias de sentido (como quando se enquadra junto a uma grande imagem de Peter Sellers). O essencial do filme, no entanto, e o que ele tem de simultaneamente mais exaltante e nem sempre muito bem conseguido, é o percurso pessoal do seu protagonista – uma longa viagem pelos confins da Gronelândia, e depois da Islândia, sempre num tom onde o “sonho” e a “fantasia” coexistem paredes-meias com a realidade, e onde nalguns momentos (pela música, especialmente “Space Oddity”, pelas personagens, pela mecânica das cenas) não é exagerado notar alguma influência de Wes Anderson (com quem Stiller trabalhou, nos “Tenenbaums”). Mas há momentos fantásticos, sobretudo quando pequenas coisas (uma viagem de helicóptero com um piloto bêbedo, por exemplo) se transformam em feitos de envergadura descomunal, só para depois se concluirem de forma anti-climática. Outros atributos: os coadjuvantes de Stiller, em especial a veterana Shirley McLaine (é a mãe Mitty) e a óptima Kristen Wiig (que Walter gostaria que fosse a Sra. Mitty), que está aqui para Stiller como Zooey Deschanel para Jim Carrey em Sim!: é a “girl” certa para o cómico certo. E um cómico certo, finalmente, é que este filme prova que Stiller é. Reparem logo na primeira cena, pré-genérico, e em como com um mínimo de elementos (um computador e a internet ligada num site de encontros) a personagem de Stiller fica, em poucos minutos, definida.

Sugerir correcção
Comentar