Presença

Decorreram 140 anos entre a pintura dos dois quadros cujas imagens podem ver aqui. O primeiro brilha em toda a sua glória bem perto de quem me esteja a ler em Lisboa porque pertence ao Museu da Gulbenkian: é o retrato do conselheiro do rei Luís XV, Louis Duval d’Epinoy, pintado em 1745 por Maurice Quentin de La Tour. O segundo está mais longe, no Museu d’Orsay em Paris. O pintor dinamarquês Vilhelm Hammershoi pintou-o em 1905.

Quando La Tour retratou o conselheiro real, rodeou-o de todos os sinais inerentes ao cargo, o aparato científico, literário e cortesão, mas também quis mostrar a “alma” do seu modelo, ou seja, a inteligência fulgurante que brilha nos olhos que fitam os nossos. Na época em que viveu Hammershoi, porém, estava em dúvida a ideia de que fosse ainda necessário fazer retratos destes: fora inventada a fotografia. Em textos anteriores, escrevi que a fotografia não consegue bater a pintura em matéria de evocação da vida, mas isso não significa que muitas pessoas não procurassem antes de mais a verosimilhança imediata entre modelo e obra, preferindo a imagem fotográfica.

Não conheço na história da pintura anterior ao século XX qualquer representação de uma figura humana de costas voltadas para o observador (excepto em cenas de grupo). A famosa Lição de Música de Vermeer restitui o rosto da sua modelo no espelho colocado sobre o virginal em que esta está a praticar.

É por estas razões que creio que o objectivo principal de pintores como Hammershoi ou Hopper ao pintarem mulheres de que não vemos o rosto, ou seja, de quem não temos uma interpretação unívoca, é procurar impor, contra o discurso fotográfico da aparência, a presença de alguém que está ali, debaixo de uma luz sem tempo, mulheres, claro, nem podia ser de outra maneira, seres que nessa época tinham muitas vezes uma vida interior e silenciosa a que só podia aceder quem amasse.

Esta crónica foi publicada na Revista 2, edição de domingo 1 Dezembro 2013

 

 

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