Entrevista com o espectro

Como numa manobra de feitiçaria, “Terra de Ninguém” faz aparecer à nossa frente um enviado das trevas da história portuguesa das últimas décadas. “Trevas” em todos os sentidos - aquilo que permanece obscuro, que não foi trazido à luz (à luz do cinema, pelo menos), mas também, como numa narrativa mitológica, “trevas” enquanto lugar de onde o mal emana. Esta conversa maniqueísta é nossa, não do filme, cuja mise en scène faz o possível por se manter neutra e por resistir a emitir qualquer comentário que ultrapasse a matéria de facto que é a presença, frente às câmaras e aos microfones, de um homem vindo dos subterrâneos da história de Portugal. Mas justamente a força do filme é essa, e é pela ausência de comentário, por não-imposição de um contexto, que a presença do homem se torna poderosamente espectral - e como “espectro” acaba o filme, singularmente desaparecido, como se, ainda em termos “mágicos”, a sua própria existência real, física, pudesse ser posta em causa e tudo não tivesse sido mais do que uma assombração.

O homem, de sessenta e tal anos, é um ex-comando. Esteve em acção na guerra colonial, onde participou em “esquadrões da morte” e cometeu execuções sumárias. Mais tarde, terminada a guerra, trabalhou como assassino a soldo, e este envolvido nos GAL, a famigerada unidade clandestina “anti-terrorista” que o Estado espanhol criou para dar caça, fora da lei, à ETA. De tudo isto o homem fala, com pormenores e descrições por vezes bastante precisos, sentado num cenário despido, em posição de absoluta frontalidade. O filme bebe-lhe as palavras e sorve-lhe os traços da fisionomia, os músculos que se mexem a cada confissão - para ele, também, o filme é um exercício confessional, e todas as considerações morais, todos os julgamentos sobre as sua acções, provém dele próprio. Para o espectador, posto no papel de ouvinte destinatário da confissão, o lugar é singularmente desconfortável - e por maioria de razão, para o espectador português, que não tem forma de se abstrair, de se pôr de fora daquela narrativa.

Pedaço de “história oral”, “Terra de Ninguém” também é uma espécie de “filme de acção”, mas onde a acção não tem imagens nem tradução visual possível - como nas trevas, nada se vê, tudo é questão de palavras e de relato. A sua sobriedade austera (apenas interrompida por um bizarríssimo número “musical”, onde se sugere que o homem, mais “fantasma” do que nunca, acabou os dias como “sem abrigo”) funciona como amplificação do poder desse relato, e é difícil imaginar que alguém lhe possa ficar indiferente.

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