Uma criança à janela disparando uma pistola de plástico

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Joanesburgo é a capital financeira e cultural da África subsariana Sherilea Gasper

Paul Theroux escreveu que em África a paz existe na natureza e o perigo só vem das cidades. É aqui que a bestialidade pode acontecer, vinda de qualquer raça

Começa assim o último livro da escritora sul-africana Nadine Gordimer, No Time Like the Present: “Houve uma Era do Gelo, uma Era do Bronze, uma Era do Ferro. Parecia que uma Era tinha terminado. Certamente, nada menos do que uma Nova Era, em que a lei não é promulgada em pigmento e qualquer pessoa pode viver, viajar e trabalhar em qualquer sítio num país como se fosse dela. Algo com o título convencional de ‘Constituição’ abriu estas portas de par em par. Só um vocabulário grandioso pode dar esse sentido aos milhões que não tinham reconhecido os direitos que estão sob a palavra liberdade. As consequências são imensas nos aspectos das relações humanas que costumavam ser restringidas por decreto.”

Seria difícil encontrar uma forma mais clara para definir o estado actual da África do Sul, 23 anos depois da libertação de Nelson Mandela, 19 anos depois do fim do apartheid e da eleição do primeiro negro como Presidente desta república fundada por ingleses, colonizada por holandeses, com 50 milhões de habitantes, 11 línguas oficiais, uma elite intelectual sofisticada, uma tecnologia de vanguarda, sujeita durante 46 anos a um regime segregacionista e renascida desse período inumano da sua história com um líder que se tornou uma referência mundial e, sobretudo, a referência mais humanista ao fundar uma nova ética baseada na possibilidade efectiva do perdão, constituindo todo o processo de reconciliação e de justiça através do lema “Perdoar, mas não esquecer”.

Contudo, a par desta Era de que fala Nadine Gordimer, uma outra se desenha no presente; na verdade, os mais pessimistas consideram que ela já se iniciou embora para os mais optimistas ela esteja apenas a anunciar-se, sendo ainda possível contê-la. Trata-se da Era do Apocalipse.

Joanesburgo, a capital financeira e cultural da África subsariana, é a cidade do frenético espírito empreendedor, dos investimentos nacionais e transnacionais, dos homens e mulheres sem medo de investir e de arriscar, dos artistas sem medo de experimentar. Todos eles, porém, com medo de não fechar o portão, com medo de não fechar a janela, com medo de parar no semáforo vermelho. Joanesburgo é uma capital do medo. E uma das poucas capitais no mundo que não tem nem rio nem lago, que não está cercada por nenhum oceano.

Existem duas cidades em Joanesburgo. Das seis da manhã às cinco da tarde, quatro milhões de habitantes agitam-se num formigueiro constante. Das cinco da tarde ao amanhecer, pouco mais de três milhões de habitantes estão silenciosos, acantonados nas suas casas. Nas ruas vivem os deserdados que se lutam por comida, por um cartão para dormir, por uma presa para assaltar. E muitos destes quatro milhões de pessoas, não tendo trabalho, ocupam o espaço público porque têm de estar em movimento. Não ter trabalho, neste contexto, é da responsabilidade individual, mesmo para os desempregados.

Daí que a cidade, ao domingo, dia em que o lazer é permitido, seja a cidade livre. Os restaurantes e as lojas estão fechados, os transportes são ainda mais raros, o tráfico é mínimo, as ruas principais estão desertas. Nada disto evita que o crime continue.

Um recente anúncio num jornal sul-africano apresentava uma jovem fechando a porta de casa com cinco fechaduras. A legenda dizia: “Se isto não for suficiente, faça o seu seguro de vida”. Este anúncio da real possibilidade do crime é uma paradoxal normalidade, como o são as grades nas portas dos prédios e, dentro dos prédios, nas portas dos apartamentos e, dentro dos apartamentos, nas janelas. Como é normal os quartos terem alarmes. A diferença entre estacionar o carro a 5 ou a 10 metros de casa pode ser a diferença entre não ser e ser assaltado.

Todo o exército e a polícia sul-africana não totalizam o número de guardas privados registados pelas 9000 empresas de segurança existentes. É esse o maior exército no país, com mais de 400 mil “guardas” que usam diferentes fardas e respondem a patrões privados, não ao Estado.

A democracia e o ANC (Congresso Nacional Africano), tendo sido o partido que melhor encarnou a justiça social, a igualdade e a fraternidade, não foi capaz de acabar com a criminalidade, de criar emprego e de distribuir mais equitativamente a riqueza nacional. O ANC é, por isso mesmo, a grande decepção do que teria sido uma boa política de esquerda em África.

Representando, em 1994, 80% da população, o ANC foi eleito e a sua agenda contemplava não a rebelião mas a construção e a governação. Era também o partido da justiça social, da igualdade e da fraternidade. Não tendo herdado esses valores directamente de uma revolução francesa, não tendo um ideário de paz universal Kantiano ou um iluminismo, tinha todavia recebido destes movimentos europeus o seu lado mais indiferente ao colonialismo – e teve manifestos de liberdade e de justiça como os de Franz Fanon, ideários como os de William E. B. Du Bois, Amílcar Cabral, Cheikh A. Diop e Julius Nyerere, entre outros.

O ANC conhecia o sentimento de um ser humano ficar sem a sua língua, sem um lugar, sem identidade, caso não fosse branco. Porém, depois de passado o sonho revolucionário dos anos de Mandela, o ANC apropriou-se do Estado e optou por se confundir com ele, conforme afirmam os seus críticos, de Desmond Tutu a Mamphela Ramphele (ex-activista do ANC que fundou um novo partido, o Agang, que significa “construir”, e que concorre às eleições de 2014 com o objectivo de fazer frente ao ANC que, segundo a sua líder, está a destruir a maior economia do continente africano). Apesar dos escândalos de corrupção de que têm sido acusados alguns dos seus líderes, é difícil que toda uma comunidade de gente que construiu a sua cultura a partir do eixo do ANC dele se afaste. Ele é como um velho e outrora glorioso clube de futebol de que os adeptos não se querem despedir.

Mas, além da acima referida Mamphela Ramphele, outras opções vão surgindo. Julius Malema, por exemplo, ex-secretário-geral da Juventude do ANC, expulso há dois anos acusado de corrupção e de lavagem de dinheiro, anuncia agora a criação de um partido, The Economic Freedom Fighters (EFF). De contornos populistas, segue o estilo de Robert Mugabe e a publicidade, as camisolas e os barretes vermelhos que usava Hugo Chávez.

É neste apocalipse que surgem companhias de teatro que se tornaram referências contemporâneas como a Handspring Puppet Company, uma nova geração de escritores, poetas, historiadores e um novo cinema sul-africano.

Vindo de Joanesburgo de carro, quase a chegar à cidade de bom gosto que é Cape Town, passa-se ao lado de Khayelitsha, uma township onde vivem 300 mil pessoas, na sua maioria negros. Ali fala-se zulu, xhoza, afrikaner, inglês, suaíli, etc. Aquelas são as pessoas mais pobres de Cape Town e as que não têm lugar no desenho da Cidade do Cabo. Aquelas pessoas são o seu fantasma permanente, que nenhum político gostaria de ter à porta da sua cidade.

A África do Sul está, aliás, cheia de fronteiras. No passado as fronteiras erguiam-se no apartheid. No presente há fronteiras visíveis e invisíveis, separando por vezes apenas uma rua de outra. Paralela a uma rua escura, coberta de gente sem-abrigo deitada sobre cartões, outra rua exibe bancos, néons e lojas de comida “muito saudável”. A rua segura pode cruzar-se com a rua onde ser assaltado é o mais provável.

Pode dizer-se que o apocalipse de Cape Town é um apocalipse feliz. A segunda maior cidade da África do Sul revela sofisticação nas suas fachadas, casas vitorianas, cenários para filmes western em Woodstock, casas coloridas no bairro muçulmano Waterkant ou de decoração afro na Longstreet. Tem o privilégio de — como o Rio de Janeiro ou Hong Kong — ter sido construída em plena beleza natural: de frente para o oceano azul, de costas para essa escultura natural que é a Table Mountain. Aqui apetece viver para sempre. Tudo parece fácil: as pessoas vestem-se informalmente, os contactos são fáceis, o tráfego é intenso porém organizado, o mar está perto, a montanha apela a caminhadas e a uma vida saudável. Depois, é certo que no meio do trânsito uma criança à janela do carro dispara balas invisíveis de uma pistola de plástico sobre os transeuntes.

Também aqui as armas estão sempre presentes na vida da cidade: as armas, os cadeados, os vidros cortantes sobre os muros, as trancas nas portas dos estúdios dos artistas – e é vê-los, a eles, a criar algumas das obras mais incontornáveis da cena artística contemporânea. Para chegar a Cape Town vindo de Joanesburgo são três dias de viagem de carro atravessando savana, rolando por estradas que parecem infindáveis, subindo montanhas e desfiladeiros, passando pelas várias cataratas, pelo Blyde River Canyon, por God’s Window, o desfiladeiro que termina nas nuvens. A estrada serpenteia por entre floresta e depois estepe rasteira e seca a que se segue a planície, vendo os campos cultivados, as hortas de floricultura, as vinhas Stellenbosch.

Paul Theroux, que fez essa viagem mítica do Cairo a Cape Town, escrevia que em África a paz existe na natureza e o perigo só vem das cidades. De facto, basta chegar a um lugarejo para que todos os sinais de alarme apareçam. É aqui que a bestialidade pode acontecer, vinda de qualquer raça. Como na obra Desgraça de J.M. Coetzee, em que pai e filha são assaltados, o pai é sovado e a filha violentada numa pequena casa no meio do campo e a filha fará queixa à polícia do assalto mas não da violação de que resultou uma gravidez e o nascimento de uma criança. Como o militante que não quer deixar o ANC para não ficar órfão, também aquela filha quer dar à luz porque lhe é insuportável a orfandade do violador. E é porventura essa recusa da orfandade o que tem adiado a Era do Apocalipse na África do Sul. 

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