O mundo tal como ele, infelizmente, é

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RUI CARLOS MATEUS

A Companhia de Teatro de Almada estreia em Portugal Em direcção aos céus, fábula satírica de Ödön von Horváth (1901-1938), autor fundamental que nos lembra a dimensão cíclica da História.

Há algo de manifestamente irónico na morte de Ödön von Horváth que, à saída de uma sessão de cinema nos Champs Elysées, em Paris, onde tinha visto Branca de Neve, de Walt Disney, foi atingido fatalmente por um ramo de árvore. A sua morte, tão patética quanto as situações que descrevia nas suas peças, mostra o quanto Hórvath foi, em toda a sua singularidade, o homem certo no lugar errado. Se Horváth fosse uma personagem da sua peça Em direcção aos céus certamente que nem o Diabo lhe recusaria o regresso à terra, por mais que a morte do inimigo do povo o satisfizesse.

Na peça, que a Companhia de Teatro de Almada apresenta desde 2 de Novembro (até dia 30 e, de 5 a 8 Dezembro no Teatro Nacional São João, no Porto) e que é a sua primeira encenação em Portugal, Horváth expõe, como mais tarde se tornou evidente, a podridão que alastrava de forma transversal na sociedade austro-húngara do pós-Primeira Guerra Mundial e que levaria ao nascimento do nacional-socialismo. “O meu único desejo é descrever o mundo tal como ele, infelizmente, é”, disse o autor que em peças como Histórias dos Bosques de Viena (1931, encenada em 2012 por Tónan Quito/Truta), Casimiro e Carolina (1932, encenada em 1976 por Luís Miguel Cintra/Teatro da Cornucópia) e Fé, Amor e Caridade (1932, encenada em 1982 por Christine Zurbach/Centro Cultural de Évora) anunciou, com a clarividência que nos outros era cegueira, o que seria a mais profunda transformação social e filósofica, porque política, que arrasou a Europa do novo século.

Horváth continua a ser um autor mal conhecido em Portugal, o que não é surpreendente se pensarmos que outros, como Brecht, também o foram até à revolução de 1974 mas, depois disso, encontraram vasto campo - ideológico e não só - para se alimentar. Assim, a estreia de Em direcção aos céus num contexto onde, na Europa, os ventos dos radicalismos, à esquerda e à direita, começam a soprar com mais insistência, é tanto mais surpreendente se pensarmos que para o autor “o perigo mais imediato [era] a direita nacionalista” e, por isso, Horváth “não poupa a social democracia”, ou seja, em defesa da própria democracia.

Para Rodrigo Francisco, que a encena, Em direcção aos céus faz “uma crítica mordaz à Alemanha do seu tempo”. Horváth sobrepõe as cenas que se passam no céu, no inferno e na terra (ou no purgatório, exposto na imagem ambígua de um teatro, ou seja, lugar onde a verdade e a mentira se confundem). Em forma de sátira mostra-se, diz Rodrigo Francisco, “a organização paramilitar e burocrática do Inferno, mais ridículo do que assustador, denuncia[-se] os primeiros campos de concentração; as personagens fazem referência directa a personalidades e eventos históricos, quer se encontrem indistintamente no Céu ou no Inferno; e não é exactamente por acaso que São Pedro e o Diabo, no texto original, falam o mesmo dialecto vienense”.

Em palco, os pactos que o Diabo assina e as provas a que São Pedro obriga as almas são uma e a mesma coisa. E, porque não há heróis sem compromissos, é a sociedade que perde.

Num texto de 2008 incluído no muito relevante programa, Matthieu Protin explica que Horváth “não se permite [a] tomar partidos”. “O olhar que lança sobre a sua época não está isento desta ‘ironia resignada’ característica de uma Áustria-Hungria que nega ter conhecido.” O seu teatro vive a denúncia através da observação e o registo: “O teatro horvathiano é uma arte da decepção: engana o seu público, alimentando expectativas para, seguidamente, o surpreender e não lhe oferecer aquilo que parecia proteger”, escreve, por sua vez Florence Baillet.

Expor a sociedade a vergar-se

A peça, na sua ligeireza burlesca é um meio para Horváth expor, a ridículo por certo, a facilidade com que toda uma sociedade se vergou. Explicava o autor: “Considero a forma do conto de fadas, misturada com a farsa, particularmente indicada, por causa dos tempos que correm e que, através desta fórmula, podemos dizer muitas coisas que, de outra forma, seriam impossíveis de dizer”. A sua geração, “ a geração sacrificada”, era a geração que regista, explica Matthieu Protin, que cita Horváth: “Em nós nada se desmoronava porque não tínhamos nada. Durante todo este tempo, limitávamo-nos a registar. Registámos, e não esqueceríamos nada. Jamais”.

Mas, quando acordaram, era demasiado tarde. Horváth viu os seus textos serem proibidos, os livros queimados, as peças anuladas e o exílio como única solução.

Pensar que é possível uma relação com a actualidade é, por isso mesmo, um risco. Encenações recentes de Casimiro e Carolina, dos holandeses Johan Simons e Paul Koek, em 2009, e Fé, Amor e Caridade, do suíço Christophe Marthaler, em 2012, mostravam como a denúncia de Hórvath sobrevivia mal a uma colagem a situações contemporâneas semelhantes. O grande risco vem do facto de que, se Hórvath, na sua clarividência, previa e denunciava, hoje a apresentação dos seus textos não pode ignorar o que realmente aconteceu.

As peças funcionam, por isso, muito mais como rememoração histórica, no que isso contém de alerta previdente, do que exposição metafórica da actualidade. Rodrigo Francisco fala “das devidas distâncias” entre o Portugal de hoje e o mundo de Hórvath, mas usa como exemplo as personagens Luísa Steinhaler, a actriz e soprano, e Leopoldo Lauterbach, o assistente de encenação, que, por coincidência biográfica, partilham com Hórvath a pertença “a uma geração de jovens que não têm lugar no mundo em que vivem”.

Já no programa de apresentação do Festival de Teatro de Almada este ano, que também dirige, Rodrigo Francisco, 32 anos, havia reforçado a necessidade de resistir à “sugestão da imigração”. Agora diz que o futuro de Luísa e Leopoldo, na metáfora usada por Hórvath para falar da sua própria vida, tinha secado “a hipótese de viverem e se afirmarem no país em que nasceram”, por força do “vento gélido do nazismo”.

As devidas distâncias, claro, até porque tal peça, e tal texto e apresentação, não poderiam ser levados a público na Alemanha dos anos 1930.

No dia em que morreu Hórvath tinha consigo um bilhete, guardado no bolso. Nele, podia ler-se: “E as pessoas vão dizer/ Que, num longínquo amanhecer,/ Saberemos distinguir/ A mentira e a verdade.// Que a mentira desaparecerá/ Quando estiver no poder,/ Que a verdade surgirá/ Quando parecia morrer.” É esta a nossa utópica realidade.

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