Pingo Doce é livre de escolher os livros que vende

O que aqui importa não é averiguar se há ou não há livros de Sócrates à venda. Afinal de contas, o grupo Jerónimo Martins é livre de decidir quais os produtos que compra e disponibiliza ao seu público

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Nuno Oliveira

Como é consabido, José Sócrates, ex-primeiro-ministro, defendeu na Sciences Pro (como se diz na gíria académica) uma tese de mestrado sobre a tortura em democracia, a qual a editora Babel decidiu publicar. Segunda-feira foi noticiado que o grupo Jerónimo Martins, dono dos supermercados “Pingo Doce”, teria, na terça-feira, dia 22, encomendado 253 livros para vender nessas lojas, mas que, dois dias depois, havia cancelado essa mesma encomenda, invocando como justificação “ordens superiores”, isto é, da administração do grupo Jerónimo Martins. Esta é a versão da editora, já que a porta-voz do “Pingo Doce” afirma que a encomenda não foi cancelada e que há exemplares da obra de Sócrates à venda nas lojas.

O que aqui importa não é averiguar se há ou não há livros à venda. As reacções à notícia são o que a torna digna de nota. Afinal de contas, existe em Portugal, no domínio dos supermercados (para o que aqui nos interessa), um mercado liberalizado no que concerne aos produtos, pelo que o grupo Jerónimo Martins é livre de decidir quais os produtos que compra e disponibiliza ao seu público, sendo livre de escolher tanto as empresas que fabricam leite e as gamas de leite que compra, como as editoras e os títulos que adquire. Por outro lado, os compradores são, também eles, livres de escolherem as lojas onde compram os seus bens, desde o leite aos livros, estando na sua disponibilidade plena fazê-lo nas lojas do grupo Jerónimo Martins ou em qualquer outras.

Não se compreende, pois, “much ado about nothing”. Ainda que tenha havido o cancelamento da encomenda dos exemplares da tese de mestrado de José Sócrates, se feito em devido tempo, são as vicissitudes dos contratos comerciais com que as empresas — todas as empresas, incluindo a editora Babel — têm de contar em relação aos seus produtos – todos os seus produtos, incluindo as teses de mestrado de ex-primeiros-ministros.

As críticas de Alexandre Soares Santos a José Sócrates, feitas em público e em diversas ocasiões, podem até ter sido o motivo das “ordens superiores” que ditaram o cancelamento da encomenda (se ele vier a confirmar-se). José Sócrates tem todo o direito a irritar-se (como constou na imprensa que sucedeu), mas o certo é que, em democracia e num mercado liberal, estes acontecimentos devem ser encarados como quotidianos, banais. Todos os dias são canceladas encomendas – é um facto. Se o livro não estiver à venda no “Pingo Doce”, não haverá milhares de outras lojas onde o livro estará à venda, número a que se somam as lojas online?

Escolhi escrever sobre este assunto porque as reacções a esta notícia são mais uma evidência de que o que parece estar a tornar-se também quotidiano é a facilidade com que se fala em fascismo, censura e quejandos em Portugal; a facilidade com que se debitam opiniões precipitadas sobre o que o outro faz e pensa no seu legítimo campo de actuação e pensamento; a facilidade com que se procura impor ao outro um modelo tido como o único aceitável de ser e de estar, sob pena de ser ofendido na sua honra e na sua dignidade pelo insulto imediato e leve; a facilidade com que se invocam as liberdades para, precisamente, se coarctarem as liberdades. Com efeito, muitas das reacções que vi à notícia que dá mote a este texto faziam tudo isso, com uma agressividade preocupante. Porém, como o episódio do (ainda não confirmado) cancelamento da encomenda da tese de Sócrates pelo “Pingo Doce” se trata apenas de um exemplo que deu origem a este tipo de comentários, haverei de voltar ao assunto, noutras linhas, porque – infelizmente – creio que motivos não faltarão.

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