Rio selvagem

O maior e mais cheio dos filmes de Jeff Nichols, e também o mais ilustrativo...

Desde o seu primeiro filme, "Histórias de Caçadeira", que Jeff Nichols tem bem definidos os contornos do seu universo: a América rural, filmada na sua violência latente e quase “primordial”, personagens desalinhadas, remissões para a religião (especialmente para a Bíblia), alusões à dramaturgia clássica integradas na estrutura dos argumentos. "Histórias de Caçadeira" terminava numa dissipação dos conflitos que se inspirava, muito provavelmente, na Tempestade de Shakespeare, mas foi no filme seguinte, "Procurem Abrigo", que Nichols filmou tempestades e dilúvios de proporções bíblicas. "Fuga" não vai nem tanto ao mar nem tanto à terra - fica-se, literalmente falando, pelo rio (o Mississípi) e pelo terreno húmido e empapado que dá nome ao filme (Mud, ou seja “lama”, é o título original) e à sua personagem principal (interpretada por Matthew McConaughey). É uma personagem bigger than life, a que McConaughey dá corpo com aquela exuberância sulista que tem caracterizado muitos dos seus papéis, de passado dúbio (é ele quem está em “fuga”) e presente solitário. É a sua aura que conduz o centro do filme, através dos olhos dos dois miúdos que se tornam o principal meio de comunicação de Mud com o mundo de que se esconde (representado sobretudo pelo grupo de homens que o procura para ajustar contas, introduzindo o mais clássico dos temas, a vingança).


Num certo sentido, Fuga é o maior filme de Jeff Nichols, o que tem o argumento mais cheio, mais intricado, onde há mais personagens para gerir e mais situações para desbobinar. Também por isso, resulta porventura no seu filme mais ilustrativo, mais dependente da exploração de um fio narrativo do que da criação de um ambiente - que era o que Nichols fazia (muito bem em Histórias de Caçadeira e assim-assim em Procurem Abrigo) nos filmes precedentes. É tudo feito com competência e uma certa elegância, mas a “escrita” fílmica de Nichols tem aqui bastante menos que se lhe diga, tudo parece mais convencional e mais morno. Entusiasma pouco, o que não é razão para que não se lhe reconheça um certo mérito nos detalhes, e em particular no casting e na maneira como Nichols consegue arrancar, com bastante economia de meios, personagens secundárias que são tudo menos indiferentes: é ver o que ele faz com veteranos como Sam Shepard ou Joe Don Baker, ou ainda com o seu actor-fétiche, Michael Shannon, aqui em versão quase autoparódica.

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