Mancha Cinzenta sobre Fundo Cinzento — a última obra de Rui Rio

Para limpar uma parede de betão existe o compressor de água. Portanto, pintar a cinzento uma parede que é de betão é pintar, e não é limpar

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Ana Maia

Em 2008, quando entrevistava o arquitecto Álvaro Siza para um estudo no âmbito do mestrado “Arquitectura e Manifestações Artísticas Não-Institucionais no Espaço Público Urbano” que incluía o Bairro da Bouça — mais precisamente sobre a parede de betão voltada para a estação de metro da Lapa (Porto) e que tinha sido integralmente apropriada de graffiti — ele disse que, naquele caso, não o incomodava a utilização que estavam a fazer, pois pintaram tudo e isso atribuía uma textura que lhe agradava. Os comportamentos e as actividades dos cidadãos não se originam do acaso. O que acontece neste caso para que exista tal adequação de forma concentrada e localizada? Vou transcrever parte de um artigo publicado em 2011 que explica as intervenções na parede do Bairro da Bouça:

Porque é que de repente aglomeraram uma série de graffitis naquela parede? Há pelo menos três factores que levaram a tal. O primeiro surge do facto de ser a única parede de betão aparente no projecto, pois todas as outras construções são rebocadas a branco, ou seja, a imagem que transmite de cinzento, tosco, inacabado é semelhante às paredes ou muros da cidade que se encontram abandonados (…). Como tal, figura inconscientemente para os artistas e cidadãos um material pobre, o que faz com que não exista uma barreira transgressora à apropriação. (…) A segunda razão está relacionada com o facto de ser um local de enorme visibilidade porque se trata de uma paragem do Metro do Porto. Através das entrevistas realizadas, desde o Pedro Tochas, Luís Barrocas, António Alves, Michel De Feo ao Olaf Ladousse, observa-se que existe um dado maioritariamente transversal aos artistas que intervêm na “rua” (…) que é a divulgação e comunicação do seu trabalho. Em muitos casos, surgiram como um projecto apenas com o objectivo de criar furor e audiência nos cidadãos. (…) O terceiro ponto, em consequência do segundo ponto, é a segregação que o local tem quando o Metro deixa de funcionar, (…) Depois de cair a noite e depois do encerramento do Metro, o lugar fica inóspito, sem qualquer tipo de função, nem mesmo a de atravessamento, o que conduz a um micro estado de liberdade e descontracção quase total onde os artistas podem usufruir e explorar essa condição.

(o artigo pode ser visto na integra aqui).

No dia 18 de Setembro de 2013, através de instruções camarárias, alguns militares pintaram por cima do graffiti que lá estava. Decidiram limpar tudo. No início fiquei sem perceber se estavam a limpar ou a pintar; se era uma intervenção artística da Câmara Municipal do Porto naquele espaço. Mas não. Eles queriam mesmo limpar. Limpar. Com tinta cinzenta sobre betão. Vou explicar uma coisa: para limpar uma parede de betão existe o compressor de água. Portanto, pintar a cinzento uma parede que é de betão é pintar, e não é limpar. Como isto tudo é tão disparatado, fiquei a pensar: será que Rui Rio quis mesmo fazer a sua última obra autárquica (neste caso: uma obra de arte) ao pintar uma “Mancha Cinzenta Sobre Parede de Betão” e assim acabar o seu mandato com uma mensagem para a prosperidade sobre a sua estadia na Câmara que foi “Cinzenta Sobre Cinzento” (o expoente máximo da abstracção)?

Ainda mais estranho é saber que quem decide fazer uma opressão desmesurada sobre quem intervém no espaço público, acaba por fazer bem pior ao pintar com uma tinta que é mais permanente e danosa que o aerosol. E assim alterar a linguagem da construção. Duvido que com o consentimento do autor do projecto e dos habitantes locais, pois estavam familiarizados com aquela apropriação. Se é apenas pintar por pintar, também podiam vir aqui ao meu prédio dar uma de mão na fachada. Tendo em conta que este processo é tão ridículo — e em vez de se pensar sobre este tipo de apropriações e saberem porque existem (pois fazem parte da cidade) — porque não criar um funcionário camarário que guarda paredes dos ataques inimigos, o homem-guarda-paredes? Entretanto vou inscrever-me no exército, nunca pensei que fosse tão fixe; já me imagino a invadir um país qualquer com rolos de tinta.

Como classificar esta demanda do Rui Rio sobre a parede de betão do bairro da Bouça: a insânia do início ao fim. Desde o nascimento — perseguir indiscriminadamente qualquer pessoa que actue sobre o espaço público — à desinformação — agir sobre um local (neste e noutros locais) em que não se conhece os precedentes, os propósitos e as opiniões —, à actuação — a contratação do exército (como se fosse uma operação de salvação nacional) para pintar sobre uma textura de betão, quando deviam ter limpo —, até ao desfecho — pois as mesmas pessoas que infringem a lei são as mesmas pessoas que fizeram a lei, e assim passaram a ser legisladores e foras-da-lei ao mesmo tempo. Dá vontade de dizer que isto “é tudo do xerife”, como canta o Sérgio Godinho.

Resta aguardar. Será que quem costumava pintar naquele espaço ganhou uma nova tela gigante. Passaram três semanas e nem um tag. Será que pelo facto de a parede de betão ter sido pintada de cinzento claro fez com que perdesse a sua linguagem rude e suburbana (como se refere na transcrição feita no primeiro parágrafo)? Espera-se pelo desenrolar de novos episódios. Entretanto podem acompanhar a novela do Banksy em Nova Iorque.

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