Qualquer coisa que suponho certa, outra vez

Fotogaleria
´Contadores de histórias no domingo à tarde na Casa do Vapor Manuel Graça Dias
Fotogaleria
Rua principal da Cova do Vapor Manuel Graça Dias
Fotogaleria
Uma das poucas casas ainda construída em madeira Manuel Graça Dias

Conheci a Cova do Vapor em 1976, quando Manuel Vicente nos sugeriu, numa aula do 5.º ano do curso de Arquitectura, que visitássemos aquela pequena aldeia de pescadores e também de "férias", para algum proletariado da Lisboa de então.

Essa primeira visita decorreu, entre parcimoniosas fotografias (longe, ainda o tempo da "abundância" digital) e alguns desenhos, numa descoberta deslumbrada de um mundo muito concentrado de maravilhosos sinais e manifestações de vernáculo periurbano.

Nas aulas, discutimos as razões da nossa adesão: era, sobretudo a "liberdade", liberdade no manuseamento dos vários signos característicos da arquitectura, no modo como os materiais disponíveis, trazidos das obras e das demolições da cidade em frente, se encaixavam uns com os outros nas barracas ainda maioritariamente em madeira, eram as janelas descentradas e desiguais a desafiarem as simetrias desejadas, os muros forrados a cacos de azulejos ou conchas, os arcos antecedendo alpendres abrigados para as sardinhadas de Junho, o Sol já baixo, sobre a praia.

Era uma aldeia de surpresas, uma Avenida de Milionários pobres, um sonho de Verão em tábuas azuis sobrepostas, com os telhados de duas águas fechando caixas alegremente distribuídas ao longo dos becos estreitos com curvas; eram os quintais de areia e desperdícios de mármore que ralas buganvílias vermelhavam na costa tranquila, olhando Lisboa do lado de lá da foz do Tejo, o Bugio vigilante.

Mas era também a escala, o doce tamanho económico, tão ao contrário das moradias burguesas gordas impantes de tantos telhados que já pontuavam o Algarve ou a costa alentejana, aqui e ali.

A "escala", a pequenez dos meios, a aduzir o futuro do aldeamento pequeno encravado na esquina de praia, depois do pinhal, que tão bem exemplificava os temas de Robert Venturi que líamos nas mesmas aulas (Complexity and contradiction in architecture,1966, e Learning from Las Vegas, 1972). Era a celebração da arquitectura anónima, a festa dos elementos banais dispostos noutros contextos que Venturi (e Vicente) exigia(m) para uma arquitectura nova e significante. "Modificando ou juntando elementos convencionais a outros elementos convencionais, pode-se, por uma troca de contexto, obter um efeito máximo com um mínimo de meios. Pode-se fazer ver as mesmas coisas de um modo diferente" (Venturi, 1966). E as casas da Cova do Vapor, com as recicladas janelas truncadas e as portas baixas, faziam-nos ver aqueles planos, que eram as suas coloridas paredes, de "um modo diferente".

Muito mais tarde soube da (segunda) origem da povoação, da fuga ao mar da foz para aquele troço do território, das barracas dispersas, das décadas de 1930 e 1940, trazidas a carros de bois para mais longe do Bugio; da fiada de seis, mandada construir em 1959 por Henrique Tenreiro que era quem dirigia a "Junta Central das Casas dos Pescadores", o primeiro núcleo "estruturado" a inaugurar o novo lugar que já existira mais para norte, a apenas 500 m do Bugio, a ilha farol. O aglomerado foi crescendo, barracas de madeira de pescadores e vizinhos, outras trazidas inteiras de praias entretanto vencidas pelo encontro do Oceano com o Tejo.

Fazia-se perto um hotel, por alturas do 25 de Abril, que hoje será uma ruína inacabada enterrada, submergida pelas águas, pelas areias, pelo pinhal, dádiva para arqueólogos do futuro. Mas a obra do hotel rapara a mata que separava a Cova do Vapor de São João da Caparica e a "malta do campismo" começou a cobiçar mais o lugar. Abril, que foi liberdade em todos os dia-a-dias, permitiu, durante uns tempos, um maior crescimento da aldeia, agora encarada como praia das férias ou dos fins-de-semana das profissões modestas. Também que se endurecessem as casas de madeira com tijolo à volta, que se solidificassem os "avançados" com betão; mas sempre com a mesma ingénua alegria, com a mesma pequena escala tranquila de quem não quer deixar de pertencer ao todo e o compartilha, num contributo simples e negociado apenas com a paixão das conchas e das cores sobrantes das latas de tinta à socapa.

Também soube do Copcon ali chamado para obstar a desmandos que se anunciavam no alastrar rápido do núcleo inicial; Copcon que terá demolido algumas das casas mais acintosamente abusivas que fugiam, já sem nenhuns pescadores, pelos pinhais em volta.

Em 1987, depois de regulares visitas com amigos e arquitectos, sobretudo de fora, que levava para testemunharem aquela organicidade tão forte de signos e significações, aquela embaraçante rudeza exacta e equilibrada, escrevi um texto, ilustrado com fotografias a preto e branco, a que chamei "Cova do Vapor: Qualquer coisa que suponho certa" (Arquitectura portuguesa, 5ª série, nº 11); era uma homenagem, uma tentativa de divulgação, mas expressava bem a pergunta a que, até hoje, não sei responder. "Não estudei o Manuelino mas posso, com conchas, frisar estes arcos trilobados, estes colunelos, qualquer coisa que suponho certa e com que falo aos meus amigos."

Supunha (suponho) certa sem saber bem explicar porquê, para lá de voltar a referir a liberdade dos arranjos, o vocabulário encarado como possibilidade de comunicação, para lá de voltar a falar da "escala", do acerto dos tamanhos e das tão desarmantes quanto "erradas" proporções.

Em 1996 voltei para registar a Cova do Vapor em vídeo, para um programa sobre arquitectura que assinava para a RTP2. A aldeia agora já quase só de férias, inserida num documentário mais alargado, "Arquitectura sem arquitectos", mostrava-se de novo através das casas mais esplendorosas, dos portões mais investidos, dos alçados mais cheios. E eu, através dele, continuava a procurar perceber o que supunha certo, porque o supunha certo.

No passado domingo participei numa conversa promovida pela "Associação Ensaios e Diálogos" que, com os arquitectos do grupo francês Exyzt e em parceria com a Associação de Moradores da Cova do Vapor, durante este ano, dinamizou a construção de uma estrutura (Casa do Vapor), em madeira, a partir de material reciclado de outras intervenções efémeras, também realizadas pelos mesmos arquitectos em Guimarães, durante a capital da cultura.

Achei a Cova do Vapor, agora, talvez um pouco menos espontânea, mais endurecida pelo tempo, com menos juventude nas dobras de janelas, no desbotado colorido normativo das paredes mais velhas, com menos memória das leves barracas de praia; com mais carros, com mais "ordenamento" de empréstimo (lombas dissuasoras, sinais de trânsito, estacionamento marcado). Ainda assim, o excesso de fios de electricidade que, pendurados dos postes de betão, correm o céu das ruas mais largas, dão ao todo um quase perfil denso de arredores de Quioto ou Bombaim, e muitas casas ainda acumulam a história do povoado em acrescentos complexos.

A tarde estava dourada e havia uma série de garotos na Casa a ouvir histórias contadas por improvisados actores. A estrutura que os Exyzt projectaram e generosamente construíram com as próprias mãos (e onde agora funciona uma biblioteca, um bar, uma pista de skate e um espaço coberto para reuniões e encontros espontâneos), parece-me ter, como característica principal, a adequação. Adequação ao sítio onde se encaixou, à (minha) tão referida "escala" do sítio (é deliciosamente pequena e "copia", num dos módulos, da volumetria do vizinho "Posto de Socorros dos Bombeiros", o exacto desenho das coberturas), à alegria discreta no modo como as tábuas de Guimarães se vieram ali resignificar, juntas de outro modo, pintadas com padrões simples de losangos azuis por sobre o pinho amarelo à vista. É, a um tempo, erudita e popular, mas sem nenhuma das categorias pisar a outra. Só estará "na moda" pelo envolvimento social do projecto mais global, não pelo seu desenho, que é neutro, anónimo, banal, fora do "gosto" corrente e, para os menos avisados, poderia parecer ter estado sempre ali, ter pertencido sempre ali.

Tenho um pouco de receio quando "grupos" de fora, de outras coordenadas culturais, se propõem ajudar ou colaborar em situações destas. Tenho medo, por maiores as boas vontades, dos involuntários paternalismos, de uma certa sobranceria urbana, dos desacertos de linguagem, das impossibilidades comunicantes, da violência imposta do exterior.

Mas perdi estes medos, pelo menos aqui, num fim de tarde de domingo, sentado com moradores e "dinamizadores" pelo chão do Largo da Avozinha, a falar do sítio, das histórias do sítio, da presença destes arquitectos (e já antes por lá tinha andado outro grupo, acompanhado por estudantes, uma Informal School of Architecture, TISA, que fez inquéritos, mediu, desenhou e, por fim, produziu uma enorme maqueta da Cova do Vapor, inaugurada na Associação de Moradores, entre copos e música num outro fim de tarde de há dois anos).

Esta Casa do Vapor irá ser desmontada, a partir de hoje, já que a licença obtida na Câmara Municipal de Almada era provisória. Os moradores têm pena, não percebem porque não haveria de continuar -- a Casa e a animação que tem trazido, mais aquelas presenças que adoptaram amigas. Dizem que até a atitude da criançada do sítio mudou, desde que os arquitectos para ali foram; que os miúdos, que nunca se teriam sentido considerados e que queriam ser rufias, foram carinhosamente tratados pelos construtores da Casa, pouco repreendidos, que cumprimentam agora toda a gente na rua, que andam com outra auto estima, que estão mais atentos.

A arquitectura não faz milagres, mas a discussão dela parece poder ajudar. Os futuros utilizadores das coisas a quererem participar nas decisões e mais os arquitectos a saber interpretar esses quereres difusos, podem construir bocados de cidade melhores, de modos mais informais, mais generosos e mais úteis. Mais bonitos, entretanto.

Qualquer coisa que suponho certa, outra vez.

 

 

Sugerir correcção
Comentar