O mundo das mulheres

Republicação da crítica ao livro O Amor de Uma Boa Mulher, de Alice Munro, premiada com o Nobel da Literatura.

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Livros de Alice Munro, expostos em Estocolmo, onde foi anunciado o Prémio Nobel JONATHAN NACKSTRAND/AFP

Existem sempre inúmeras mulheres, de todas as idades e feitios, nos contos da escritora canadiana Alice Munro, nascida na província de Ontário, em 1931.

Os estudos de género debruçam-se com aplicação sobre as suas personagens de mães, filhas, irmãs, amigas, companheiras, primas, vizinhas e amantes que enchem páginas e páginas com as suas acções, os seus sobressaltos e ansiedades, num mundo acolhedor e caseiro mas por vezes sombrio, onde os gestos habituais podem bem esconder pensamentos pouco recomendáveis.

É em torno destas figuras femininas que tudo gravita, incluindo os homens que se limitam a segui-las ou a abandoná--las, a amá-las e a desejá-las, a ignorá-las ou a imporem a sua presença. No universo das mulheres tudo fervilha e crepita e elas, como abelhas diligentes, como formigas cumpridoras ou como alegres cigarras, ocupam-se dos filhos e das casas, são provedoras do conforto mas também causadoras de incómodos, gerem conflitos e defendem interesses, entre porcelanas, molhos de menta, livros, bolos, móveis descarnados, águas de colónia, roupa interior, flores, abraços, lágrimas e hospitalidade transbordante. Ao ocuparem um lugar tão central, elas são sempre as personagens verdadeiramente interessantes, cheias de complexidade e segredos, adúlteras e por vezes psicóticas, plenas de malícia e de mau humor, apaixonadas, violentas e ternas.

Ao longo de mais de meio século, Alice Munro tem persistido nas suas narrativas perfeitamente buriladas sobre as relações entre os membros de famílias aparentemente banais, no ambiente semi-rural que a viu nascer. A tensão e as clivagens, que se espalham como uma epidemia entre as personagens, remetem-nos para Raymond Carver e Anton Tchekov, principalmente naquilo que sugerem em termos de "brevidade e ansiedade", numa escrita minimalista e cortante, mas extremamente rica na construção de ambientes e descrição de detalhes.

Alice Munro começou a escrever ainda na adolescência e, ao longo dos anos, os seus contos adquiriram um estatuto de singularidade, tendo sido considerados como os mais interessantes e bem conseguidos da literatura contemporânea, ao lado dos da norte-americana Jayne Anne Phillips e seguindo a tradição da grande Flannery O'Connor, a quem Munro presta um óbvio tributo, muito evidenciado no conto Salvo o Segador, que recupera o famoso Um Homem Bom É Difícil de Encontrar, essa "jóia da coroa" da autora sulista, que desenvolveu com perícia o género gótico grotesco muito utilizado também por Faulkner e Carson McCullers.

No entanto, e apesar de, em Munro, se encontrar uma forte componente de "espírito do lugar" e uma vaga tensão ameaçadora, as histórias de O Amor de Uma Boa Mulher reflectem uma realidade diferente, talvez menos acerba ou carregada da angústia violentamente católica de O'Connor mas igualmente complexa e surpreendente.

Na história que dá o título ao livro, três rapazes correm e brincam juntos. Em casa têm vidas, famílias e atmosferas diferentes mas, na rua, são livres e sentem-se poderosos. Um dia, encontram um cadáver dentro de um carro abandonado e não sabem como agir. Nada comunicam à polícia e vão para casa almoçar. Esta hesitação torna-se o pretexto para a autora nos enredar numa teia de afectos e cumplicidades, segredos e "coisas que ficam por dizer ", pesadelos e mentiras. Este, tal como a maior parte dos outros contos, passa-se nos anos 50, num tempo de grandes mudanças, quando pelo menos em relação às mulheres se vivia numa época que "estava no fim, embora (as pessoas) ainda o não soubessem", como diz a "pequena noiva" em A Ilha de Cortés, a jovem que acaba por ficar fascinada com o mistério que envolve a vida dos vizinhos do andar de cima e os segredos de um fogo de consequências fatais.


Em As Crianças Ficam, uma família passa férias na ilha de Vancouver. Tudo parece correr bem, é Verão, as filhas brincam felizes na praia, mas Pauline, a mãe que se sente aprisionada no casamento, só pensa no amante, o director de um teatro local, e acaba por partir como Anna Karenina e Madame Bovary, deixando tudo para trás, preocupada apenas em "seguir em frente e habituar-se, até que seja só o passado a doer e não o presente, seja ele qual for". Em O Sonho da Minha Mãe, um feroz nevão transforma a percepção das coisas e uma mulher tenta lembrar-se onde deixou um bebé "lá fora, durante a noite", enquanto este pesadelo se confunde com a morte do marido. Em Jacarta duas amigas travam um guerra fria, feita de mal-entendidos e sugestões ácidas e, em Podre de Rica, mãe e filha confrontam-se violentamente num abismo de solidão.

As histórias de Munro, embora estreitamente relacionadas com a sua geração, possuem uma espécie de atmosfera intemporal e sonhadora. São meditações de onde não está ausente um certo espanto ligado a um sentido de humor bastante subtil e quase desesperado em torno das mutações constantes e eternas, tanto na sociedade como no lugar mais íntimo do pensamento e das emoções de cada ser humano, com os seus anseios e lutas e, principalmente, com as suas incomensuráveis faltas.

Texto originalmente publicado no Ípsilon, de 30 de Maio de 2008
 
 
 

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