Engolir piropos não devia provocar o reflexo de vómito

Porque de entre a gigante lista de coisas que faltam na discussão política uma das maiores lacunas, e também uma das menos mencionadas, é a capacidade de empatia

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Soube-se no fim de Agosto que Elsa Almeida e Adriana Lopera queriam discutir o piropo na figura da violência de género e machista – e a internet parece ter explodido em debates furiosos (o que, em calão da internet, é conhecido como InstaWin, pelo menos do ponto de vista das duas activistas!).

Deixo-vos já em paz: não vou discutir o "piropo". A explicação da Adriana Lopera está no YouTube para toda a gente ver e ouvir, e eu não o teria dito melhor; também não vou discutir uma "proposta de lei" completamente ficcional.

Ao invés de falar de uma coisa com a qual tenho pouquíssima experiência, vou falar de outra, com que convivo todos os dias: o privilégio de ser considerado homem numa sociedade concebida para beneficiar homens. O privilégio, portanto, de praticamente não ter experiência nenhuma de ter de lidar com piropos – e o privilégio de ter podido passar por essa experiência sem me sentir posto em perigo, e sem achar que poderia ser alvo de violência (física ou psicológica) caso respondesse de alguma maneira (ou caso não dissesse nada, dependendo da situação).

Reparem, eu não disse que "só as mulheres é que recebem piropos", ou que "todas as mulheres se sentem agredidas por todos os piropos", nem que “os homens não se sentem agredidos, nunca, por piropos". O que eu disse foi que faz parte dos privilégios da esmagadora maioria dos homens, na esmagadora maioria das situações, não ter de ser confrontado com: 1. comentários sobre o seu corpo, vestimenta ou desejabilidade sexual, 2. sem ter verdadeiro direito de resposta, 3. e sentindo com isso uma potencial ameaça à sua integridade (física ou psicológica).

Mais ainda: faz parte dos privilégios da esmagadora maioria dos homens, na esmagadora maioria das situações, não necessitar de enquadrar essa e outras experiências num clima – social, cultural e pessoal – de constante agressão e de violência de género.

Posto de outra forma: eu não faço a mais pequena ideia, nem sequer por aproximação, o que é ser uma mulher constantemente assediada, só por sair à rua, esteja vestida como estiver, tenha a forma corporal que tiver, tenha o comportamento que tiver. Conclusão básica a retirar: se eu quero saber o que é essa experiência, calo-me e aprendo com quem sabe.

A sério. É mesmo assim tão simples. Queres combater o privilégio (não só o masculino, mas também o de classe média, branca, ocidental)? Pára de falar do que não sabes e aprende com quem sabe. Tens uma noção intelectual, teórica e dicionarista do que é "piropo" e "assédio" e das suas supostas diferenças? Porreiro, mas antes talvez queiras acrescentar à lista as noções intelectuais, teóricas e dicionaristas de "falogocentrismo" e "catacrese". E depois, talvez queiras ouvir quem tem uma noção directa, psicológica e emocional desse mesmo assunto.

Porque de entre a gigante lista de coisas que faltam na discussão política (em Portugal, pelo menos) uma das maiores lacunas, e também uma das menos mencionadas, é a capacidade de empatia.

Empatia: "Sofrer com. Tomar a dor alheia como nossa, deixar que o sofrimento alheio nos seja pessoalmente ofensivo. Ouvir o que é, como é, e porque não deveria ser, esse sofrimento. Engolir o privilégio, sem querer vomitar para cima de toda a gente em seguida.

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