Maturidade lusa

Dois registos notáveis com origem no colectivo nortenho Porta-Jazz mostram sinais inequívocos de uma maturidade há muito anunciada

Se é certo que há muito se vislumbram sinais de uma maturidade crescente no jazz nacional, num processo que deu origem a registos superlativos de Bernardo Sassetti, Mário Laginha, André Fernandes, Orquestra Jazz de Matosinhos, Carlos Bica, Sara Serpa, João Paulo Esteves da Silva, Carlos Barretto, Mário Delgado, Júlio Resende ou Carlos Martins, entre muitos outros, é também certo que faltava ainda concretizar discograficamente os sinais vindos de uma comunidade vibrante que se tem vindo a organizar no norte do país em torno da Associação Porta-Jazz e da vibrante Escola Superior de Música do Porto (ESMAE). Tendo dado já origem a uma geração de músicos disposta a marcar os caminhos futuros do jazz, essa comunidade começa agora a fixar em disco, de forma consistente, o trabalho sério que têm vindo a desenvolver.

Editados no final do ano passado, Aljamia e Clepsydra vêm estabelecer novos padrões para o jazz feito no nosso país, Aljamia pela qualidade e exuberância das composições e arranjos (da autoria de João Pedro Brandão) e pela naturalidade com que são interpretados, e Clepsydra pela ponte que faz entre tradição e vanguarda, apostando forte numa visão altamente pessoal da música, sem concessões. Em Aljamia, interpretado por um ensemble all star de 11 músicos, a música surge ágil e clara, em suaves tonalidades mediterrânicas que contaminam o espírito hard-bop de todo o projecto. Nos seis temas originais de Brandão, com arranjos que fazem naturalmente pensar em Gil Evans e Bob Brookmeyer, destacam-se as vozes singulares de Susana Santos Silva no trompete (excelente solo em Kalenderi), José Pedro Coelho no saxofone tenor (elegância e fogo, a evocar Shorter, em Ensaio primeiro), e Rui Teixeira no saxofone barítono (determinante no rigor tímbrico dos arranjos, vibrante em Corrente).

Embora com origem na mesma comunidade de músicos, Clepsydra é toda uma outra história. Há muito que o saxofonista José Pedro Coelho se confirmou como um dos mais promissores músicos jazz da nova geração, estatuto que se vê agora reforçado com a edição deste primeiro registo em nome próprio. Optando por uma abordagem mais exploratória e orgânica, o saxofonista constrói um notável universo sonoro em torno de temas aparentemente simples, que são depois ampliados pelas suas notáveis capacidades de improvisação (lirismo poderoso e contido, com destaque para o voo de The Clairvoyant) e pela excelência instrumental do grupo que o acompanha - Hugo Raro no piano, Miguel Moreira nas guitarras, Demian Cabaud no contrabaixo e Marcos Cavaleiro na bateria. Mas aquilo que mais fascina em Clepsydra, álbum que se deixa descobrir lentamente, é a sua capacidade de convocar influências das mais distintas origens, do jazz mainstream à clássica contemporânea ou ao free (sem entrar nunca no território da fire music), destilando uma música que se afirma como ponte vital entre a tradição e a vanguarda do jazz Sem crise prova que Gabriel nacional.

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