Como uma santola sem recheio

Adaptação exemplar da obra da artista ao um contexto

Uma primeira dama, um primeiro ministro, ministros, secretários de Estado, duquesas e outros restos da nobreza, actores, gente da finança, colunáveis, curiosos e, sintomaticamente, muito poucos representantes do lusitano mundo das artes: era esta a composição da festa de abertura da exposição antológica de Joana Vasconcelos, uma festa que espelhava a fama que a artista alcançou no meio português. Para todos os efeitos, é um nome que todos associam a um tipo de objecto artístico vistoso, colorido, frequentemente grande e de metáfora rapidamente compreensível. A sua escolha para representante do país na Bienal de Veneza foi objecto do mais amplo leque de comentários nas redes sociais, chegando aos níveis do mais abjecto cyberbullying. A artista parece encolher os ombros perante isso, e reinava, num provocatório vestido à Maria Antonieta e pluma na cabeça, entre os mais altos representantes dos portugueses. A história dela não precisa desse meio. Faz-se por fora.

A exposição consiste numa adaptação exemplar da obra da artista ao contexto. Convém interrogarmo-nos, em primeiro lugar, por que razão visitaríamos um palácio, e sobretudo um palácio que é um fantasma de um passado próximo. O edifício, que albergou a família real desde finais do século XIX até à implantação da República, devolve-nos um retrato retocado do que seria o quotidiano dessa família durante a época em que aqui residiu. Dos aposentos privados no rés-do-chão até aos salões de aparato no primeiro andar, a visita guiada e limitada (tudo se passa num corredor que atravessa cada sala, não sendo possível entrar na maioria dos espaços propriamente ditos) satisfaz uma curiosidade que apenas difere em grau da mesma que suscita a vida dos famosos hoje em dia. Entre os pormenores que nos contam quem visitou a rainha Maria Pia quando teve filhos e os enjoos matinais da princesa disto ou daquilo, o tipo de atenção, provocado por um mesmo sentimento de exclusão, não varia.

É neste âmbito que Vasconcelos intervém. No rés-do-chão, os seus bibelots de cerâmica e croché inserem-se de modo certeiro no mundo atravancado de objectos dos finais da monarquia. Mesmo as instalações que ocupam um espaço por inteiro, como o Jardim do Éden de flores de plastico fosforescentes numa sala às escuras, ou as fontes construídas com ferros de engomar, não destoam do ambiente em que se encontram. Alguém dizia, nas filas da inauguração, que aqueles objectos deviam estar ali sempre. Num certo sentido, estão: o excesso do mobiliário da época e o vazio de vida que este tipo de monumentos sempre transmite é o mesmo que existe na obra de Vasconcelos, marcada pelo excesso, onde as máquinas e as formas parecem replicar-se por uma lei física só delas conhecida, e de onde qualquer mensagem está excluída: são o que são e não pretendem ser mais do que aquilo que são.

No primeiro andar, passadas as salas mais pequenas onde televisores antigos cobertos de croché e cabeças de touros penduradas no meio de retratos empoeirados dão continuidade à montagem escolhida para os apartamentos privados do piso inferior, as peças em grande escala potenciam esse vazio. Dos sapatos em panelas de alumínio de Marilyn ao Lilicóptero em penas de avestruz, da Valquíria pendurada numa galeria à Noiva feita de tampões, tudo nos devolve esta ausência de sentido que o monumento antigo transmite e que a arte contemporânea possui para tantos. Vasconcelos assume a sua condição contemporânea ao apropriar-se do que lhe interessa, do surrealismo de um Dalí à serialidade de um Warhol; de um ready-made duchampiano aos trabalhos têxteis da cultura popular. Reproduzindo-os, retira-lhes conteúdos e capacidade de intervenção social. Ficam as formas, e a forma é a sua matéria por excelência. Como as lagostas e santolas sem recheio, o seu olhar sobre a arte é, simples e magistralmente, o mesmo que a sociedade sobre ela deita: curioso, divertido, moderadamente indignado, e só raramente erudito.

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