De olhos bem fechados

Às escuras: a nova individual de Rui Chafes coloca-nos perante a impossibilidade de ver

Trata-se da estreia de Rui Chafes na Galeria Filomena Soares. E, conhecendo-o e acompanhando a sua obra há mais de 20 anos, percebe-se que o artista tenha querido trabalhar o espaço imenso da sala principal da galeria, de dimensões pouco usuais: uma nave que não perdeu os sinais da antiga função industrial que foi a sua, e que Chafes considerou na sua totalidade, exemplarmente.

A exposição descreve-se rapidamente: cinco peças de metal negro, dispostas na vertical e em paralelo numa das paredes maiores, que recordam as nervuras dos antigos arcos góticos das catedrais. Uma iluminação mínima, na fronteira do inexistente, que tem como consequência uma visita difícil do espaço. Não há luz vinda do exterior. Há, apenas, a ténue claridade que os projectores fazem incidir sobre cada peça, e os vultos dos visitantes que partilham o espaço e que não identificamos. Ou as vozes, que ajudam a identificar o seu lugar na sala de exposições.

Há quem dê ajudas para entrar na sala. Diz alguém que é preciso fechar os olhos durante uns instantes para que eles se habituem à escuridão e consigam orientar-se no espaço. Outros informam que o artista não permitiu a ninguém ver ou fotografar antes da inauguração para que a surpresa fosse total. De qualquer modo, o resultado é exactamente o pretendido: uma desorientação total do espectador, a consciência dos limites físicos da visão (ou seja, do corpo de cada um), e finalmente uma exposição que conjuga indissociavelmente obra, corpo e lugar. De facto, se se focar especificamente a atenção nas obras expostas, elas inserem-se sem rupturas na continuidade da produção escultórica de Chafes. Serialidade, trabalho do metal, pintura do mesmo metal e, sobretudo, um conjunto de referências que remete para uma narratividade romântica. Dissemos antes que as esculturas recordavam as nervuras dos arcos góticos das catedrais. De facto, o processo de trabalho de Rui Chafes convoca sistematicamente conceitos românticos como a perda, o sublime, a ausência; ou seja, uma abordagem do trabalho do escultor que presentifica o passado histórico como paradigma metafísico. Deste trabalho, faz parte integrante também o texto, próprio ou como tradução de autores que o artista considera relevantes. Para esta exposição, escreveu um pequeno ensaio onde fala do espaço sacral, do esvaziamento, e de Alberto Giacometti que queria, “desesperadamente”, tornar o espaço “magro”. Ou seja, acrescentamos nós, reduzi-lo à sua mera existência, e tranformar o cubo branco que todos os espaços de exposição ainda são num cubo negro, numa qualquer coisa que de coisa já tem muito pouco, e que de morte tem cada vez mais. Rui Chafes confessou-nos que esta exposição era sobre a morte. E, de facto, o arquétipo da impossibilidade de ver é o nada, o sono sem fim, de olhos bem fechados. A errância cuidadosa a que o artista obriga cada espectador na nave da galeria, transformada em ruína de uma catedral talvez há muito soterrada, a própria inacessibilidade das esculturas, montadas bem acima da altura de um corpo, acaba por transformar esse mesmo espectador no protagonista principal da exposição. É que a morte é a morte dos corpos, não das coisas, e é em torno desses corpos que tudo aqui gira.

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