O debate que falta fazer

O império colonial português tem conhecido uma atenção editorial sem precedentes, sobretudo na sua fase final. Da ficção ao memorialismo, da historiografia académica ao documentário, este destaque passou mesmo pela criação de editoras que se dedicam quase exclusivamente à história e à memoria dos derradeiros anos do colonialismo português em África. Alguns dirão logo que em fase de crise é natural que o Atlântico Sul esteja de volta, quer na verdadeira acepção de promessa de futuro quer no mais ideológico “mercado da saudade”. Outros, mais avisados, dirão que a vaga começou antes. Mesmo no campo político aliás, a tentativa de mobilização dos veteranos da Guerra Colonial, à medida que estes se aproximavam da idade da reforma, já tinha acirrado o tema, pelo menos desde a viragem do século.

Os estudos académicos sobre o chamado terceiro Império colonial português não seguiram esta tendência e têm outra periodização. Manda a intuição falar de vagas e gerações, mas a verdade é que o colonialismo português foi sempre alvo de uma razoável atenção das ciências sociais internacionais. Podemos até afirmar, sem risco de errar, que entre os anos 60 e até bem para lá da descolonização, talvez até aos anos 80, o que de mais interessante foi produzido sobre a história da África colonial portuguesa no século XX foi escrito em inglês e francês e só episodicamente traduzido em português.

O atraso na investigação foi mais português do que internacional e nesta como em outras áreas foi a pesquisa universitária lusa que ficou para trás, pois a caravana foi continuando a fazer o seu caminho. É nesta perspectiva que este livro expressa uma nova dinâmica no estudo do colonialismo português contemporâneo e, mais importante, demonstra como esse atraso está a ser finalmente colmatado. De facto, a lufada de ar fresco que a modernização das ciências sociais portuguesas produziu sob o impulso internacionalizador da Fundação para a Ciência e Tecnologia (veja-se a quantidade de capítulos com os agradecimentos da praxe) começa visivelmente a dar frutos. Nos seus 17 capítulos, este livro espelha o estado actual da diversidade temática e disciplinar da investigação sobre o colonialismo português. Mas o elemento mais animador é que a maioria dos estudos incluídos na obra foge ao “paroquialismo excepcionalista” que ainda domina alguns segmentos da historiografia académica portuguesa, e esta demarcação é bem visível na introdução do organizador, Miguel Bandeira Jerónimo.

É natural (e humano, aliás) que alguns capítulos tenham despertado mais atenção mediática do que outros, por darem um chapada ocasional na memória benigna da Guerra Colonial que ainda hoje marca a sociedade portuguesa. Foi sobretudo o capítulo de António Araújo, sobre um fuzilamento sumário cometido pelas Forças Armadas portuguesas no início da guerra em Angola, cujo rasto sobreviveu milagrosamente à ordem de destruição de qualquer prova documental, que dominou a atenção aquando da sua publicação (vide PÚBLICO de 17-12-2012). Afinal, elementos das Forças Armadas fuzilaram e os seus colaboradores locais cortaram e empalaram cabeças em actos de justiça sumária para jugular revoltas e assustar populações. Graças ao capítulo de António Araújo, a complementar com o de Diogo Ramada Curto e Bernardo Pinto da Cruz, temos exemplos e análise da conjuntura destes actos de extrema violência. Na memória dos debates futuros, ficarão certamente como “resposta” aos massacres de colonos brancos por alguma mobilização messiânica africana. Mas o mais interessante, creio, é ver até que ponto este modelo repressivo corresponde a conjunturas de radicalização e se vai repetindo com estas, ou se, pelo contrário, a estratégia e a eficácia das Forças Armadas portuguesas e o aperfeiçoamento dos sistema de informação e repressão fizeram destes casos a excepção. Atenção que a investigação sobre estes temas ainda vai no adro.

Marcado pelo debate estival sobre a natureza do Estado Novo contra o historiador Rui Ramos, não houve espaço para uma boa polémica sobre a Guerra Colonial (ou “do Ultramar”, e ela poderia logo começar por aqui...) e as visões luso-tropicalistas dos últimos anos do colonialismo português, que quase começou quando este livro foi publicado. Receio que, a existir, a polémica mediática se fique por novas versões do mais do mesmo, com uns a esgrimirem um Ultramar benigno e outros um totalitarismo exterminador do colonialismo. Tal quereria dizer que boa parte da historiografia académica não conseguiu quebrar os muros da opinião publica, mas valha a verdade que a maioria dos debates sobre o passado tem mais a ver com o presente do que habitualmente se pensa. Vamos ver.

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