Um lugar onde vivem pessoas

Assinado por André Diniz mas na verdade feito a dois, Morro da Favela oferece-nos um retrato do Brasil favelado. Sem vergonha e sem orgulho

São raras as representações da favela na banda desenhada, mas, sobretudo nos anos 1980, uma em particular fazia parte do quotidiano de muitos leitores portugueses. Da autoria de Ivan Saindeberg (texto) e Renato Canini (desenho), era colorida, movimentada e alegre nas histórias de Zé Carioca e seus amigos. Raramente nelas figurava a pobreza, e nunca a violência, o que se percebia: existia em revistas de vida curta (de ler e deitar fora) que tinham as crianças e os jovens como públicos-alvo.

Morro da Favela, do brasileiro André Diniz, nasce de outro tempo, tem outra ambição. Nas suas páginas, encontram-se alguns dos recursos formais e das estratégias que marcaram a última etapa da legitimação artística da banda desenhada: o pendor autobiográfico, a relação com o real e a memória, o uso expressivo do preto-e-branco. Nisso, suscita diálogos óbvios com obras afins - Persépolis, de Marjane Satrapi, ou Mourir partir revenir, de Zeina Abirached -, procurando abordar um tema sério. Um grande intervalo separa-a pois, em termos formais e históricos, dos quadrinhos da Editora Abril.

O tema sério é a vida na favela do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, retratada pelo desenho de Diniz a partir das memórias do fotógrafo Maurício Hora. É a história deste, ali nascido e criado, que o autor conta, aproximando-se (e citamos Pedro Moura, do blogue Ler BD), do sentido etimológico da palavra reportagem: “transportar para trás”. Acompanhamos a infância, a adolescência e a entrada na idade adulta de Maurício. Sempre com a história da favela como pano de fundo: do declínio dos bicheiros e da figura do malandro à ascensão do traficante e do tráfico de droga, passando pelo endurecimento e pela crescente corrupção da polícia.

Tudo se passa dentro: nas ruas, nas casas, nas colinas da favela. O único vislumbre do exterior (ou lá de baixo, nas palavras de Maurício, é uma vista da Central do Brasil ou do horizonte longínquo do mar. Mas a fluidez das machas de preto e branco, a presença e a ausência da perspectiva na mesma vinheta, a composição gráfica dos espaços e das sombras e o traço levemente “infantil” impedem qualquer realismo ou pretensão documental. Em contrapartida, anulam-se as distinções étnicas (são todos pretos-e-brancos) sem que isso prejudique o retrato do lugar, com as suas relações sociais, os seus hábitos e os seus códigos de conduta. O tom não é condescendente, nem maniqueísta. Quando visita o pai na prisão, Hora joga à bola com outros meninos, como se estivesse num parque. Descobre que os bandidos são os polícias, mas que há policias que não são bandidos. Pouco convencido, ajuda a mãe a recolher fruta abandonada no mercado. Vive na favela sem orgulho e sem vergonha.

A precariedade das habitações, a violência doméstica, os ajustes de contas não ficam de fora das pranchas, acompanham a transformação do menino em adolescente. Nesse processo doloroso e confuso, é a família que protege, dá um sentido à vida de Hora. As mais belas pranchas de Morro da Favela descrevem as conversas e os encontros com o pai, compõem a evocação do meio-irmão desaparecido num tiroteio com a polícia ou descrevem a generosidade da mãe para os mais fracos da favela (pobres, prostitutas, travestis). Talvez por isso, o desaparecimento da família surge em elipses (incluindo o estertor violento da mãe). Os dois autores coíbem-se de imaginar esses momentos traumáticos, fugindo do melodrama ou do burlesco. Interessou-lhes sobretudo, através da banda desenhada, retratar um lugar onde viveram e vivem pessoas.

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