A poética do ralo

Um ponto culminante do mergulho desenfreado de Hitchcock nos seus fantasmas e no seu sadismo.

O “Hitchcock revival” continua, e, depois de Vertigo, regressa às salas outro dos seus mais lendários títulos, Psico. Foi realizado quase a seguir: é de 1960, Vertigo de 1958, pelo meio houve Intriga Internacional. E pertence em cheio ao que é porventura o mais delirante período da obra de Hitchcock, essa passagem dos anos 50 aos anos 60 (que se completaria com Os Pássaros, em 1963, e Marnie, em 1964) em que a decomposição anunciada das estruturas tradicionais do cinema clássico americano foi rimada, na obra de Hitch, pelo rebentamento e pela reinvenção de todas as convenções narrativas e figurativas, por um mergulho na abstracção raras vezes visto no contexto da produção industrial americana. Mergulho também, e completamente desenfreado, nos fantasmas de Hitchcock, cada vez menos necessitados de disfarce. E no que toca, muito precisamente, a algo a que chamaremos a “escatologia” hitchcockiana, Psico é um ponto culminante, só ultrapassado, cerca de dez anos mais tarde, pelo mais “porco” dos seus filmes, Frenzy (já eram outros tempos, os anos 70, e outros lugares: Frenzy foi um episódico regresso de Hitch à sua Inglaterra natal, e talvez o último dos seus grandes, grandes filmes).

Psico é daqueles filmes que, em teoria, toda a gente conhece. Mas, e lá nos vão outra vez chamar “reaccionário!”, é um filme que só se conhece mesmo depois de se o ter visto em sala. E não estamos a falar de questões técnicas, da dimensão do ecrã, do escuro, etc. Estamos a falar de questões humanas: ver Psico numa sala cheia de gente é uma experiência extraordinária, o filme passa, como poucos, para a plateia, gera-se uma electricidade impossível de restituir em casa, onde a única electricidade é a que mantém a televisão ou o computador ligados (e falamos em memória pessoal de uma sessão de Psico na Cinemateca, há 20 e tal anos, que quase se tornou em happening, até gritos, gritos de pavor, se ouviram). Evidentemente é dos filmes mais assustadores alguma vez concebidos, e tudo o que depois foi feito na lógica (e no género) do terror lhe deve alguma coisa, inclusive nos melhores exemplos (do Halloween de Carpenter aos Screams de Wes Craven). E não menos evidentemente é um dos filmes em que Hitchcock mais libertou o seu sadismo; até nisso, no medo e no pavor que provoca, em total controlo e previsão das reacções dos espectadores, Psico é um exemplar de um tempo em que os filmes eram feitos a pensar em seres humanos e não numa decomposição estatística e tipológica de um “perfil” de espectador. De resto, e como Hitchcock disse talvez até mais do que uma vez, a verdadeira matéria do seu trabalho eram os espectadores, o filme apenas um instrumento: a sua metáfora preferida - os espectadores como “orquestra” que ele, “maestro”, dirigia - talvez nunca se tenha cumprido tão plenamente como em Psico.

No livro-entrevista com François Truffaut Psico é dos filmes a que Hitch se refere com mais orgulho. Até comercialmente: aposta pessoal de fazer um filme “barato” aproveitando a leveza de uma estrutura de produção não muito distinta da exigida pelos episódios da sua série de televisão, Psico custou 800 mil dólares e rendera, até ao momento da conversa com Truffaut, mais de 13 milhões, rácio fabuloso que fez de Hitchcock (como produtor do filme) um homem rico. Mas sobretudo conceptualmente: Hitchcock orgulhava-se de que tal sucesso tivesse sido conseguido com aquilo a que chamava “cinema puro”. E queria com isso dizer que, não havendo no filme nada de especialmente agradável para o espectador, nem nada com que se pudesse identificar (nem um actor, nem uma personagem), o que envolvia a audiência era apenas e só a “pureza” do gesto cinematográfico, a eficácia total de uma construção de cinema e pelo cinema - o “controlo do universo”, como Godard lhe chama nas Histoire(s) du Cinéma. Essa “pureza”, o gesto pelo gesto, fora o que seduzira Hitch para a história original de Robert Bloch que o argumento adapta. Na conversa com Truffaut, o realizador não se mostra especialmente agradado com o livro, e quando Truffaut lhe pergunta “então, porquê?”, Hitch responde que foi a cena do chuveiro que lhe despertou o interesse. A cena do chuveiro: tour de force técnico-erótico, talvez o único momento em todo o cinema clássico americano em que a montagem “explode” como explodia em Vertov e Eisenstein, momento fulcral que liga o ralo de uma banheira às espirais de Vertigo, que liga o sublime e a porcaria, que põe os “buracos” (o ralo, o orifício na parede por onde Norman Bates espreita as suas hóspedes) no centro de tudo. O último plano do filme anterior de Hitch, Intriga Internacional, mostrava outro buraco, um túnel e um comboio a entrar nele. Maneira de dizer, também, que Psico tresanda a sexo de uma ponta à outra, e nunca nenhum filme tresandou a sexo de maneira tão perturbante.

E nada contámos da história. Toda a gente conhece. E quem não conhece, mais vale ir ver em total virgindade. Assustar-se-á mais e melhor.

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