Da infância e do cinema

Manoel de Oliveira revisitado por Manuel António Pina - como num espelho

Se a paixão de Manuel António Pina pelo cinema não era das suas facetas públicas mais conhecidas, o poeta já teria deixado “pistas” sobre ela quando escreveu que teria sido outra pessoa, “muito mais desoladamente pobre”, se não tivesse visto A Sombra do Caçador (1955) de Charles Laughton, filme tão ternurento quanto tenebroso sobre o perigo solitário de se ser criança no mundo dos adultos. É esse olhar que também vinga na primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira - Aniki-Bóbó (1942) -, sobre a qual o poeta português deixou um testemunho por encomenda do British Film Institute (BFI). O seu texto nunca viria a ser publicado na colecção do BFI (por diferendos quanto a direitos de autor), mas encontrou agora vida pela mão da editora Assírio & Alvim.

Manuel António Pina começa por contextualizar o lugar do realizador português na sociedade portuguesa de então depois do primeiro “escândalo” de Douro, Faina Fluvial (1931), filme que rompe com todos os modos instituídos da representação da vida portuguesa (já dominados por uma máquina de propaganda que rejeitaria sempre o olhar inovador de Oliveira): “Começara (...) a frequentar os meios literários ligados à revista Presença, onde o poeta José Régio (...) havia saudado entusiasticamente o filme. E, para escrever o argumento de Aniki-Bóbó, foi justamente inspirar-se num conto - no genérico do filme chama-se-lhe ''poema'' - da autoria de Rodrigues de Freitas”. Desse “poema”, Manoel de Oliveira iria filmar a paixão de um tímido rapaz por uma rapariga da sua escola, paixão que o fará ultrapassar os limites ensinados pelo mundo adulto (ao roubar uma boneca e viver com a culpa do seu gesto). Um sentimento, afinal, próximo dos futuros filmes “adultos” do realizador: “O inquieto amor do pequeno Carlitos por Teresinha é, como bem observa João Bénard da Costa, uma parábola metafísica sobre temas como a culpa, o pecado, o desejo sexual e a morte, temas que (...) serão recorrentes em grande parte da sua obra posterior.”

Nesta história de crianças, Oliveira colocaria, portanto, algumas das suas principais inquietações adultas, um gesto no qual Manuel António Pina talvez se tenha revisto a si próprio, se levarmos em conta a sensibilidade do seu próprio trabalho em poesia. Expõe assim as intenções do filme: “Fazer espelhar nas crianças os problemas do Homem (...), pôr em oposição concepções do Bem e do Mal, o ódio e o amor, a amizade e a ingratidão”. E se Pina defende Aniki-Bóbó como um filme poético, será pelo seu “olhar inicial (..), lírico e intuitivo: é através da desmesura do olhar infantil que tal universo se nos revela e é pela inocência transformadora desse olhar primeiro que ele ganha ''força poética''”.

Mas o que torna Aniki-Bóbó num filme pioneiro não é a forma de elevar a vida simples das crianças ao olhar adulto - pelo contrário, está em fazer “descer” as grandes questões da vida para o olhar delas. Para Pina, do mundo adulto “só chegam ao mundo elementar das crianças de Aniki-Bóbó vagos ecos (...) como uma sombra ao mesmo tempo tutelar e ameaçadora que paira sempre sobre os sentimentos e os comportamentos” - palavras que definem a essência da infância.

“A sociedade adulta funciona, vista do lado das crianças (...), como um ameaçador horizonte de interditos e de regras incompreensíveis e como uma ordem alheia à vontade de liberdade e de felicidade que anima e dá sentido à sua vida quotidiana.” É nesse conflito que vive o amor de Carlitos (um nome que é uma referência directa a Charlot, escreve Pina) por Teresinha, amor que se vê ameaçado pelo mundo que os espera - o mundo adulto, que traz a consciência da culpa e do ciúme, desviando-os da pureza que a infância prometia.

A resolução passa por uma necessária conciliação entre inocência e maturidade, uma luta, também, travada com adultos vistos como monstros. “Talvez, de facto, a experiência infantil pessoal que Oliveira aqui convoca tenha sido ''pura''”, escreveu Pina. “Mas talvez o cinema, como a arte em geral, possa ser também um instrumento de revelação.” Ou seja, dentro do seu mistério, Oliveira revela a verdade do mundo: que a infância, afinal, carrega a mesma gravidade e a mesma paixão que uma idade adulta mais sabedora, mas também corrompida. Se Oliveira coloca a câmara ao nível das crianças, é porque acredita na capacidade do cinema para revelar o que perdemos com a idade e se tornou invisível. “Uma grande parte do lirismo, às vezes quase confessional, de Aniki-Bóbó (...) resulta dessa íntima relação de Manoel de Oliveira com o trabalho cinematográfico, que permite que ele continue ainda hoje a ser, em sentido literal, um amador, alguém que ama.” Foi a essa arte que Oliveira dedicou a sua vida centenária, apesar da polémica que sempre o acompanhou. “A crítica do seu tempo, como a generalidade do público, não lhe perdoaram a audácia da transposição de problemáticas ''adultas'' (...) para o mundo convencionalmente puro que seria o das crianças”, escreve Pina. “Manoel de Oliveira foi, nas suas próprias palavras, ''riscado'' pelo regime. E teve de esperar (...) 30 anos para poder fazer um novo filme de ficção.” Fica uma interrogação com o leitor: se esse país moralmente conservador mudou e soube finalmente aceitar a sua diferença.

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