2013 entre o sol e as ruínas

2013 vai ser um ano difícil dadas as medidas de autoritarismo financeiro tomadas por este governo, associadas a um pessimismo que decorre da ausência dos sentidos que eram atributos da política e ideologia democráticas - e que têm a humanidade como sua razão de ser. Esses sentidos foram substituídos por um despotismo e por um fundamentalismo financeiro que visa controlar todos os mecanismos do poder e reduzir a grande maioria dos portugueses a meros contribuintes que perdem todos os dias direitos de cidadania.

O sector do cultural - que inclui a criação artística contemporânea mas também a herança patrimonial, sempre tão frágil - está a ser destruído e corre o risco de se desmantelar completamente (da edição de livros à educação artística), pondo em causa a democracia. Não é, contudo, tempo de desistir. Por isso, é fundamental encontrar formas de resistir: imaginando, colaborando, criando e partilhando. Mais do que nunca, é imperativa uma atitude que concilie o debate público com as actividades de recepção e conhecimento. Urge haver um entendimento mais transversal das práticas culturais e, tanto quanto possível, uma atitude mais solar. Assim, uma viagem, na Primavera, pela estrada antiga que vai do Porto a Foz Côa pode proporcionar dias de enorme prazer e descobertas raras: a paisagem do Douro, a beleza das giestas, a nobreza do granito. Aproveite-se a oportunidade para ler ou reler o Eugénio de Andrade, a Agustina Bessa Luís, o Eça, o Camilo, A Dama Pé-de-Cabra do Herculano; para ver ou rever as telas do Amadeo de Souza Cardoso ou, numa sessão em grupo, o Vale Abraão do Manoel de Oliveira.

Num momento em que em Portugal se estão a realizar filmes extraordinários - e que são um contributo notável para a cinematografia europeia - veja-se, discuta-se, converse-se sobre isso mesmo. Porque toda a conversa a que subjaz uma dialéctica é uma conquista da modernidade europeia e deve ser - e agora mais do que nunca - um instrumento de desconstrução da demagogia e de construção de novas atitudes e modelos. Que se organizem sessões do cinema que está a ser feito em Portugal por tão extraordinários realizadores, como Joaquim Sapinho, Serge Tréfaut, Miguel Gomes, Bruno de Almeida, Margarida Cardoso, João Salaviza, Bernardo Nascimento, Teresa Villaverde, Tatiana Macedo, José Filipe Costa, João Botelho, Gonçalo Tocha, João Canijo, Leonor Noivo e muitos outros - há tanto cinema português para programar e ver em 2013!

Que se leia literatura daquela a que Goethe chamava universal - há tantos autores a descobrir! Tchekov e Tolstoi, a poetisa sul-africana Antjie Krog, o poeta brasileiro António Cícero, os iconoclastas Allen Ginsberg, Sylvia Plath e Wally Salomão, o escritor nigeriano Chinua Achebe, o escritor somali Nuruddin Farah, a filósofa americana Joan Tronto, o sociólogo francês Geoffroy de Lagasnerie, o poeta português António Franco Alexandre, o escritor chileno Hernán Rivera Letelier, e ainda Golgona Anghel e Nuno Ramos e A.M. Pires Cabral e tantos outros.

Serão tantos dias a ler! Resista-se, com o sentido da rebeldia com causas: vendo exposições - pequenas, grandes, de artistas anónimos e de conhecidos - participando em debates - se forem maçadores, interrompa e exija que se intervenha com qualidade, que seja crítico e teoricamente produtivo -, comentando nos jornais, nos blogs e no facebook, excluindo-se das tiranias da intimidade ou das afirmações banais. Converse, discuta, convide os seus amigos, os amigos dos seus amigos para jantares ou piqueniques, e resista. Orgulhe-se de ser culto e irónico e alegre tanto quanto possível, e resista.

Nesta forma de resistência há debates a fazer para que se encontrem sentidos. Um deles, urgente, deve ter lugar no interior do designado sector cultural (preferia sempre falar de pessoas que de qualquer modo estão envolvidas na cultura artística) - que não é nem homogéneo nos conteúdos, nem na forma; porém, há que criar solidariedades entre as organizações de maior escala e com capacidade de produção e de apresentação e as organizações mais pequenas - que desaparecerão se não houver essa solidariedade, essa colaboração e convivialidade. Implica isto negociar culturalmente o que é possível de modo a que seja possível, neste estado de urgência, continuar a viver e a viver em comum. Porque, em 2013, o programa de governo aplicará as receitas que conhecemos dos regimes de muitos países sul-americanos das décadas de 70 e 80, quando estes países estavam reduzidos apenas a duas classes sociais: a dos muito ricos (muito poucos) e a dos pobres. O referido programa de governo inclui tanto a privatização dos recursos naturais como a venda dos aeroportos, a redução drástica do custo do trabalho, a pauperização dos museus, o concurso da DGArtes para os apoios às artes performativas, a humilhação do sector. O referido programa visa vender a baixo custo a mão de obra e o conhecimento intelectual, visa a amnésia das narrativas de pertença e de criação de futuros comuns.

Viver em comum, como muitos reclamam, implica negociar culturalmente o possível - e o possível, neste estado de urgência, é criar formas e plataformas de partilha. Caso contrário, a estes tempos de chumbo podem seguir-se outros ainda piores, onde o medo e a fúria ocuparão as cidades, os vizinhos serão violentos contra os vizinhos que ainda conservarem os empregos, violentos contra aqueles que ainda ontem eram os amigos ou os colegas; e disputar-lhes-ão as casas, os transportes, a alegria.

Face à declaração de guerra que os nossos governantes e seus aliados declararam à maioria dos portugueses, não há que ter ilusões: a situação é de confronto, e exige de nós uma argumentação sólida e resistência face à lúmpen-proletarização. No sector cultural, ninguém pode continuar a desconhecer as leis básicas da economia, o direito de intervenção política mais ou menos público. É imperioso reclamar que a liberdade é soberana em relação à segurança e ao autoritarismo.

E, depois da paisagem de ruínas que este governo deixará como a sua única herança, vai ser necessário reconstruir tudo. Porventura indecisos sobre o que fazer, ou divididos, já por medo ou por cautela, entre o agir e o não agir, há que encontrar soluções no futuro imediato, experimentar algumas, arriscar outras, mesmo que tragam os riscos de pensar de outra maneira, de agir de outra maneira, tendo como horizonte o facto de que sermos europeus nos dá um privilégio de cidadania e de herança; mas que a democracia não está garantida se não a vivermos nos limites das nossas possibilidades diariamente.

A acessibilidade às formas de conhecimento e de prazer ou de inquietação que são as artes não garante uma mudança de regime, nem a paz no mundo, nem o fim do autoritarismo. Mas é um excelente instrumento de consciencialização do tempo e da política. Também por isto, não se pode desistir do teatro, de o ver, de o fazer. Em Portugal há companhias muito conscientes da importância do teatro na vivência da democracia e do conhecimento: o Teatro do Bairro Alto, a Mala Voadora, o Teatro do Vestido, As Boas Raparigas..., os Artistas Unidos, a Casa Conveniente, os trabalhos de Victor Hugo Pontes e muitos outros. Elas transportam consigo, neste tempo de chumbo, uma ideia de Futuro e de Democracia.

Crónica publicada no Ípsilon de 4 de Janeiro

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