Como abrir uma casa

Resgate, de Isabel Carvalho, arrisca-se a ser o mais importante livro de “poesia” portuguesa do ano que agora terminou

Para as pessoas falhas de entusiasmo pelo estado “contemporâneo” da poesia, achar um livrinho como Resgate é uma bênção. Achar é o verbo, pois 260 exemplares mal têm chance de circular em muitas livrarias. E a editora Pé de Mosca não fez mais.

É um livro extremamente económico. Primeiro, no sentido etimológico, já que se resgata nele uma casa (um oikos) com os seus recantos, memória e haveres. Da bacia ao lustre, da mesinha de cabeceira à dobradiça ou ao estuque, o que estou a citar são títulos de “poemas” iguais a partes de casa que se sucedem nas páginas brancas e não numeradas de Resgate. Depois, no sentido quantitativo em que “poemas” vai entre aspas por serem na verdade linhas, a maior parte das vezes só uma linha ou linha e meia debaixo do título. (Exemplo: “VARANDA/ Aos estrangeiros expomo-nos como estrangeiros.”) Finalmente, no sentido pragmático, porque há só uma pessoa que fala, uma incerta primeira pessoa do plural que, através desse “nós”, retoma do oikos a conotação familiar ou comunitária.

Com tão pouco, Resgate arrisca ser o mais importante livro de “poesia” portuguesa em 2012. Desde logo, por ser pouco português: aquele “nós” também tem em casa um MAPA a cujo propósito escreve apenas: “Recriamo-nos Ocidente.” Uma dissolução da mitologia europeia, como das identificações nacionais que fizeram a Europa, exprime-se e não sem ironia nessa frase ultrabreve de uma comunidade vaga que será agora “Ocidente” por já não poder ser mais coisa nenhuma.

Simbolicamente, isto corresponde a descer do rapto de Europa para O Rato da Europa, que é a colecção em que o livro se integra. Retoricamente, equivale a não salvar da poesia senão a linha mais curta, um infra-epigrama que, esquivo a poéticas, quer a máxima partilha no mínimo de palavras. Isabel Carvalho procede segundo uma rigorosa disciplina de enunciação em que a dispersão dos que cabem no anonimato de “nós” vale mais do que a “alteridade” entrincheirada com que alguma poesia nada salva se não o selo com que quer ser consumida.

Raramente se encontra hoje melhor exemplo da recusa de Michaux: “O poeta não é uma excelente pessoa que prepara a seu grado cozinhados perfeitos para o género humano.” (A tradução é de Rui Caeiro.) Quando da casa resgata o PRATO, tudo o que Isabel Carvalho tem para dizer é isto: “Comemos das mãos em perigo.” E o leitor que na sua humanidade requeira um sentido, até negativo, mas bem servido, corre o perigo de sair esfomeado desta casa onde não há se não restos e aperitivos. Enigmas ou vestígios, mas nunca mensagens com todos os ingredientes para a degustação do inteligível.

Por qualquer parte da casa nunca fazemos mais do que uma breve passagem, e quando roçamos a ESTANTE não admira, por isso, que encontremos só esta inscrição: “Os poetas embaraçam a filosofia.” Vertiginoso resumo (que em cinco palavras vai de Platão a Heidegger e Derrida), é sintomático que não haja “nós” nesta leitura do mais europeu dos confrontos espirituais. O embaraço poético não é nem talvez tolere ser reivindicado por ninguém: basta a elipse radical para saber de que lado se aproxima a voz anónima que a pronuncia. O jogo elíptico prolonga o embaraço e dispensa a identificação. É uma maneira de perceber o que “nós” fazemos em presença do CABIDE: “Descosemos as fardas que nos enrouparam.”

Poesia, para Isabel Carvalho, não é certo que seja uma arte, ou, quando muito, é uma “arte do pouco” - segundo o título de Daniel Klébaner que já fazia sentido traduzir. Da mesma maneira que fala de fora do colectivo dos poetas, também é sem farda de artista que a voz de Resgate cita essa jóia da casa europeia, a arte. Invoca-a, porém, como JÓIA FUNDIDA e aí há como que um exorcismo do pouco que subsiste (em “nós”) da ideia de arte: “Desejamos para a arte que ela desconstrua/ lugares-comuns.”

Fora a infância, talvez não haja lugar tão comum na poesia moderna portuguesa como o da casa, seja no “problema da habitação” de Ruy Belo, nas casas alegorizadas de Luiza Neto Jorge ou nas casas da alma de Herberto Helder. A casa resgatada de Isabel Carvalho dialoga com essas. No seu texto evasivo, a mulher que o subscreve parece às vezes dizer “nós” como se “nós, as mulheres” falassem dos objectos da casa que foram, em tempos, o próprio espaço da sua vida. Mas é só um simulacro de identidade que, ao jeito de Magritte, parece extrair um corpo do traçado de uma ESCOVA: “Penduramos pelos cabelos o corpo oscilante.”

Não é por alguns, meros leitores, serem homens que estarão menos aptos a saudar o aparecimento de Resgate com a frase adequada: Isabel Carvalho somos nós.

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