Negro romance familiar

Cem anos da história da China através da saga às vezes épica de uma família levantada da fome e da miséria - eis o Nobel da Literatura

Quando, no passado dia 11 de Outubro, Peter Englund, secretário permanente da Academia Sueca, anunciou ao mundo que o Prémio Nobel da Literatura de 2012 era atribuído ao escritor chinês Mo Yan, devem ter disparado vários pensamentos entre as pessoas que se interessam por estas notícias. Uns terão pensado: mais um escritor de que ninguém ouviu falar. Outros: eu sabia que ia ser um chinês. Outros ainda: mais um prémio político.

Em Portugal, já tinha sido publicado um livro do autor. Foi em 2007, pela Ulisseia, e o livro passou ao lado de toda a gente; ninguém ouviu falar dele, ninguém o elogiou, ninguém o denegriu - ninguém lhe ligou. Ainda assim, o livro estava esgotado. Pondo os fenómenos editoriais de parte, o que interessa é que a editora fez uma nova impressão. Graças ao estatuto de Nobel, a capa ostenta, em letras garrafais, o nome do escritor. A seguir, lê-se em caixa alta a referência ao Nobel. Depois, não vá o leitor ter alguma curiosidade acerca disso, aparece em letras minúsculas o título da obra: Peito Grande, Ancas Largas. O livro foi traduzido do inglês e traz um prefácio do autor dessa tradução, Howard Goldblatt, que pode deixar alguns leitores de pé atrás. Diz-se: “Peito Grande, Ancas Largas foi pela primeira vez publicado em livro pela Writers Publishing House. (...) Seguidamente, em 2003, a China Workers Publishing House publicou uma edição abreviada. A presente tradução foi feita a partir de uma versão mais curta ainda, gerada por computador, que o autor forneceu.” O que temos é, portanto, uma tradução de uma tradução de uma edição mais curta do que a edição abreviada, gerada por computador (?). Que objecto é este? Respiremos. Continuemos. Apesar de tudo, ainda é um livro. Se esquecermos este labirinto de versões, se esquecermos as questões políticas, se estivermos dispostos a enfrentar as 600 páginas de um romance chinês e não nos assustarmos com a lista de personagens que aparece no início (em que todos os nomes parecem iguais e não conseguimos distinguir nomes masculinos de femininos), Peito Grande, Ancas Largas revela-se uma experiência gratificante. O romance segue a família Shangguan e acompanha quase cem anos da história da China. Em 1900 nasce a mãe, Shangguan Lu. Tem sete filhas, quase todas de pais diferentes - nenhum deles o marido, estéril. Só à oitava gravidez, em 1939, se torna uma mulher útil, porque finalmente tem um filho varão. Shangguan Jintong é o narrador de grande parte do romance e é maioritariamente através dos seus olhos que vemos os acontecimentos.

É verdade, como se lê em algumas descrições da obra, que o livro nos mostra grande parte da história da China moderna, mas o termo a utilizar tem de ser mesmo “mostrar”. Isto porque entre revoluções, contra-revoluções e combates contra os japoneses, as facções não são identificadas e um leitor sem grandes bases fica sem perceber quem é quem e que momento histórico é aquele. Não é mau, é apenas uma opção. O romance foca-se no povo, nesta família de camponeses pobres que, por ser quase só de mulheres, acaba por ter relações, através dos casamentos, com homens de todos os campos: um traidor que se aliou aos japoneses, um revolucionário comunista, um contra-revolucionário direitista, um aviador americano, etc. Esta opção permite ao autor mostrar-nos um pouco de tudo. A família Shangguan oscila entre a fome extrema, que obriga a que duas das filhas sejam vendidas, e a abundância. Tudo varia consoante quem esteja no poder. O mais interessante, contudo, é mesmo a saga familiar, com contornos épicos, que este romance é. Jintong vai crescendo, assistindo à partida das suas irmãs com os homens que escolheram (e aos seus regressos), recebendo sobrinhos pequenos que elas não podem criar e que vêm disputar o leite materno em que ele é viciado.

Mo Yan é um escritor com um humor delicioso, muitas vezes negro, que faz dele um mestre a dar más notícias e a descrever situações horrendas. Com isso, faz com que não sintamos uma grande empatia pelas personagens, porque nos rimos delas, mas garante o nosso interesse na leitura, porque é sempre recompensado. Assim, grande parte do livro lê-se de sorriso no rosto, perante a tara de Jintong por mamas, mamilos e leite materno (“Não há sob o céu imenso quem compreenda ou ame ou saiba preservar um par de mamas como eu”), as descrições cruéis sem eufemismos (“O galo arrogante estava a ser despedaçado, espalhando carne crua e sangue fresco pelo chão. Como lobos numa alcateia, os cães digladiavam-se pelas entranhas. Os mudos batiam palmas e riam - guh-guh”) e toda uma série de acontecimentos mirabolantes, facetas caricatas do comunismo, mortes macabras e reviravoltas no poder. A primeira metade da obra é mais forte e mais bem conseguida. Ficando-se por aí, Peito Grande, Ancas Largas seria uma obra-prima. A segunda parte funciona menos bem. O ritmo altera-se, com saltos temporais muito maiores do que no início, em que acompanhamos todo o crescimento de Jintong; e a política começa a ser chamada pelos nomes, clarificando tudo. Embora continue focada na família Shangguan, a parte final do romance é mais histórica e política. Continua a ser interessante - o retrato feito do comunismo é delicioso e o ridículo evidenciado deixa-nos sempre de sorriso no rosto -, mas, depois de habituar o leitor a um romance familiar - uma espécie de Cem Anos de Solidão em bom (mais cruel, mais extremo e, paradoxalmente?, mais divertido) -, desilude um pouco que os holofotes se afastem demasiado dos Shangguan. Sobretudo da Mãe, personagem importantíssima da primeira parte, evocada aliás pelo título. Mulher de uma força sobre-humana, é a ela que todas as filhas e todos os genros recorrem quando se vêem em apuros. Depois dos seus nove filhos (as sete primeiras mais Jintong e a sua irmã gémea), teve de criar ainda uma infinidade de netos. Sofreu às mãos do marido e da sogra, foi violada, teve de vender filhas, teve de pedir esmola, teve de roubar, teve de passar frio e fome para salvar da morte as crianças. Tudo isto para acabar vendo o seu único filho varão tornar-se um homem inútil.

Peito Grande, Ancas Largas é às vezes é um murro no estômago, mas está escrito num estilo que conjuga na perfeição a beleza e o humor. Lendo o prefácio de Mo Yan ao seu livro de contos Shifu, you''ll do anything for a laugh, ficamos a saber que o motivo principal que o levou a querer ser escritor foi a fome. Neste romance, percebemos de modo inequívoco o quão marcante foi para ele a experiência da fome e da miséria. Políticas, polémicas e edições à parte: Peito Grande, Ancas Largas é uma obra interessantíssima e divertida que funciona como excelente cartão de visita para o Nobel chinês.

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