A beleza do gesto

O testemunho do fim de uma época. Não só o cinema, nem só a encruzilhada analógico/digital, é a questão mais vasta da substituição de um mundo por outro.

Treze anos depois de Pola X, Leos Carax desperta de um sono profundo, e vai ao cinema. O sono tinha sido entrecortado pelo breve sobressalto de Tóquio!, em 2008, que até é relevante para Holy Motors por causa da personagem do Monsieur Merde, que nesse “sobressalto” (um episódio de um filme de um conjunto) nasceu e agora reaparece. Mas não muda o essencial: Carax desperta e vai ao cinema. Os primeiros minutos de Holy Motors são isto, com Carax como protagonista e tudo.


Os restantes minutos também. Carax desperta a tempo de assistir ao fim de uma época, e de disso oferecer o seu testemunho. Não é só o cinema - que é o “protagonista” do filme - nem é só a encruzilhada analógico/digital, é a questão mais vasta da substituição de um mundo por outro, do desaparecimento de uma coisa que dá lugar a outra. Algum do melhor cinema visto este ano - Oliveira, Tarr, Ferrara - vem ferido e atravessado por esta noção de fim. Holy Motors é o mais explícito; e ao mesmo tempo, passando o paradoxo, o mais preciso e difuso. O mais preciso, porque nomeia claramente, quase fazendo tipologia, a época de que se despede: a era das máquinas, a era dos “motores santos”. Carax disse-o em entrevistas, e se o não tivesse dito a inacreditável cena final (inacreditável de corajosa: no papel aquilo devia ter tudo para parecer uma ideia ridículo) dizia-o por ele: uma grande garagem, limousines brancas à conversa (!) umas com as outras, e a lucidez de uma delas, que avisa as restantes da sua iminente condenação, “porque os homens deixaram de gostar de máquinas grandes e barulhentas” (não refere, se a memória não nos atraiçoa, o facto de também serem “poluentes”: Carax deixa o “politicamente correcto” de fora desta história, e de resto quase tudo em Holy Motors é altamente “incorrecto”, louvado seja).

Deixaram também de gostar de cinema, e das máquinas com que o cinema se fazia. Noutro ponto do filme, o protagonista (Denis Lavant), que pode ser descrito como muitas coisas, mas sobretudo como um actor (uma personagem de actor, isto é), diz algo com parecido com uma tirada do Sunset Boulevard de Wilder: que dantes as câmaras eram maiores que os actores, mas agora os actores nem se apercebem da presença das câmaras (de tão pequeninas, tão “electrónicas”, elas se tornaram, subentende-se). Frase que conta menos pelo que diz - embora diga alguma coisa - e vale mais como elemento que ajuda a cerrar o filme em torno dessa ideia: o que era deixou de ser. Holy Motors é a história de uma teimosia e duma persistência - a do cinema - num mundo que deixou de pedi-las, deixou mesmo de reconhecê-las. Um mundo sem cinema, “distópico”, quase-fc, na intersecção entre Alphaville (que não será inocente num godardiano como Carax) e Cosmopolis (que será mais coincidência, até por causa da limousine), sendo certo que Alphaville e Cosmopolis são, no fundo, a mesma cidade (que também se podia chamar “Alphapolis” ou “Cosmoville”). Uma Paris neutra e corriqueira, ao mesmo tempo muito real e muito distante, muito palpável e muito imaginada, cidade por onde um homem deambula, de rendez vous em rendez vous, a misturar o seu cinema com a vida. Um “fantasma”, evidentemente não desejado, coisa vinda dos subterrâneos e aos subterrâneos regressada, mas regressada com, e isto faz toda a diferença, um “troféu”: Eva Mendes, nem mais nem menos. Falamos de uma das sequências mais extraordinárias do filme, a do cemitério, evocação directa (até pelo efeito da íris, à mudo) do Fantomas de Feuillade, no ponto em que se encontra (lamentamos, é o que nos faz lembrar) com o João de Deus de César Monteiro a sair dos esgotos para “lhes dar trabalho”. É isto que o fantasma, que o cinema, que o Sr. Merda anda a fazer: a dar-lhes trabalho. A dar trabalho até ao digital, como na belíssima sequência do combate/acasalamento entre manequins de uma operação de motion capture.

E a dar-se trabalho, e a lembrar-se do trabalho. Quando lhe perguntam (o diálogo com Piccoli, sempre na limousine conduzida por Edith Scob, que não terminará o filme sem envergar a máscara dos “olhos sem rosto” de Franju) por que razão continua a fazer “isto”, ele responde: “pela beleza do gesto”. E aqui está toda a luz do filme, que não faz outra coisa se não evocar, em gesto largo, a beleza “disto” - a música, o amor, o crime, o terror, o céu, o subterrâneo, a natureza, o estúdio, os temas, as formas, as práticas, os homens, as mulheres - instalando-se num tempo em que tudo “isto” se extinguiu e resta apenas a memória esbatida da beleza do gesto, como assombração que não larga os que dela, nalgum momento, foram testemunhas. Magnífico filme, evidentemente.

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